Immanuel Kant
De Rerum Natura
A natureza das coisas
quinta-feira, 25 de abril de 2024
A LIBERDADE COMO CONSTRUÇÃO HUMANA E FINALIDADE ÚLTIMA DA EDUCAÇÃO
Immanuel Kant
quarta-feira, 24 de abril de 2024
CONTRA A HEGEMONIA DA "NOVA NARRATIVA" DA "EDUCAÇÃO DO FUTURO", O ELOGIO DA ESCOLA, O ELOGIO DO PROFESSOR
VENERAR O QUE NÃO EXISTE
Sumptuosas catedrais e mesquitas,
erguidas com fortunas e suor,
votadas a um deus que não exista,
servirão o fervor ou o terror?
Tanta pedra e também tanto luxo
votados àquilo que não tem prova,
alimenta-se em saber de bruxo
ou em arte que tal saber promova?
Aceitar o contraste perturbante
entre a fé que se não pode provar
e a pedra que a venera, triunfante,
mostra como se podem conjugar
a fé por que anseia o coração
com a recusa que vem da razão.
Eugénio Lisboa
segunda-feira, 22 de abril de 2024
NOVOS CLASSICA DIGITALIA
Os Classica Digitalia têm o gosto de anunciar 2 novas publicações com chancela editorial da Imprensa da Universidade de Coimbra. Os volumes dos Classica Digitalia são editados em formato tradicional de papel e também na biblioteca digital, em Acesso Aberto.
Fora de Série [estudos de homenagem]
- Carmen Soares, Marta González González & Nuno Simões Rodrigues (Coords.), Neste lugar, a sagrada Hélade salvámos. Homenagem a Luísa de Nazaré Ferreira, vol. I (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2024). 333 p.
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2478-5
- Carmen Soares, Marta González González & Nuno Simões Rodrigues (Coords.), Neste lugar, a sagrada Hélade salvámos. Homenagem a Luísa de Nazaré Ferreira, vol. II (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2024). 341 p.
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2488-4
[Esta obra reúne um conjunto de estudos em homenagem a Luísa de Nazaré Ferreira. Especialistas de diferentes domínios científicos refletem sobre temas relacionados com a Grécia e a História Antigas, mas também com outras áreas da História, da Literatura, da Política e da Religião. Salamina constitui o eixo central em torno do qual se organiza o Vol. I – testemunhos literários, o seu impacto na História e a receção na Arte e na Literatura. O Vol. II congrega diversos contributos, do Egito e Roma Antigos à Época Moderna e Contemporaneidade. A riqueza de temáticas, transversais no tempo e no espaço, reflete as respostas dos colegas, amigos e discípulos ao apelo de participar nesta homenagem à helenista, professora e investigadora da Universidade de Coimbra, Luísa de Nazaré Ferreira.]
__________________________________________Classicadigitalia_pt mailing list Classicadigitalia_pt@uc.pt http://ml.ci.uc.pt/mailman/listinfo/classicadigitalia_pt
sábado, 20 de abril de 2024
O TEMPO QUE ESTAMOS A VIVER
“O poder do feiticeiro reside na ignorância dos seus irmãos tribais”. Quer isto dizer que, quanto mais inculto for o povo, mais facilmente é dominado e, até, desprezado pelo poder. Sempre foi assim. Está escrito e reescrito na História.
E sempre assim será num país caído nas lutas entre aparelhos partidários, onde emergem políticos incompetentes e oportunistas, de que a nossa sociedade está cheia, onde, de há muito, impera a corrupção, o vírus do futebol profissional e a promiscuidade entre a política, o poder económico e a justiça.
Ao aproximar-se a data de comemorarmos os 50 anos de liberdade, é com um sentimento de profunda decepção que me dou conta deste grande número de anos desaproveitados. É por demais evidente que não soubemos aproveitar a liberdade que nos foi oferecida, para erradicarmos muitos dos nossos atavismos civilizacionais e culturais.
Comemoramos 50 anos de liberdade, apenas de expressão, reunião, criação de partidos, associações e coisas assim, mas são muitos os nossos concidadãos, sem esquecer os milhares de emigrantes, privados da liberdade de dar aos filhos uma refeição e uma habitação condignas, de acesso à justiça, em pé de igualdade com aqueles que a gente sabe.
É evidente que a revolução, de que estamos a festejar o quinquagésimo aniversário, nos abriu portas e janelas à democracia, à segurança social, aos cuidados de saúde, à ciência, ao ensino e à cultura, portas e janelas que se têm vindo a fechar sob o olhar de uma classe política mais interessada nas lutas partidárias, nos compadrios e nas vantagens do poder. Uma classe política que não facultou aos cidadãos cultura civilizacional, científica e humanística. porque entendeu que havia outras prioridades.
Este abandono permitiu que uma significativa parcela dos portugueses a quem a escola não deu capacidade para “distinguir o trigo do joio”, marcada pela iliteracia de quase tudo, alienada pelo futebol e pelos programas televisivos de entretenimento que nos impõem e nos entram pela casa dentro a toda a hora, desse ouvidos a uma extrema direita (até, há pouco escondida e diluída nos partidos de direita e de centro-direita), agora, com importante voz no Parlamento, que, usando da plena liberdade que a democracia nos oferece, tenta declaradamente destruí-la, fazendo uso de um populismo inteligentemente pensado, que diz aquilo que essa grande parcela da população, desiludida e empobrecida física e intelectualmente, quer ouvir.
Entramos na nova legislatura e no novo governo com várias crises por resolver, entre as quais destaco, por conhecer melhor, a da Educação, que, desde há muito, por falta de visão política atravessa uma crise, sem solução à vista. Estamos a viver um tempo de inverdades ao mais alto nível e incertezas, à beira (estou em crer) de nova crise política. Um tempo de miséria e, até, de fome para um número cada vez maior de famílias, de miserável abandono dos idosos, de corrupção descarada e impune e de aumento do número e da riqueza dos ricos. A chamada classe média está a afundar-se, o desemprego está a ressurgir e é mais um incentivo crescente à igualmente dramática emigração de uma juventude qualificada.
É este o panorama nacional nas vésperas de celebrarmos os 50 anos daquela madrugada. É verdade que há muito para festejar, mas também é verdade que tenhamos consciência de que é preciso que saiamos à rua, unidos e em força, num Portugal de Norte a Sul, como naquela manhã que agora se comemora.
Galopim de Carvalho
50 ANOS DE CIÊNCIA EM PORTUGAL: UM DEPOIMENTO PESSOAL
Meu artigo no último As Artes entre as Letras (no foto minha no Verão de 1975 quando participei no Youth Science Fortnight em Londres, estou de óculos atrás):
Em 25 de Abril de 1974, eu era caloiro do curso de Física
da Universidade de Coimbra (UC). Fui para Física por ter lido vários livros de
divulgação científica, alguns deles de Rómulo de Carvalho. Também contribuiu a
visita que fiz, no 7.º ano do Liceu D. João III, ao Laboratório de Física da UC.
Escrevi sobre essa visita no jornal O Estudante, dos alunos daquela
escola, elogiando o ministro da Educação José Veiga Simão, professor de Física da
UC, a quem «cravei» sete contos para o jornal. O facto de ele ter acedido logo revelou-me
que os tempos estavam a mudar. A Revolução chegou-me a meio da manhã: foi-me
cancelada uma aula de Cálculo Infinitesimal, no edifício da Matemática. Voltei
para casa para ouvir a rádio e, à noite, ver a televisão.
O PREC não afectou o meu curso, que só tinha quatro alunos (todos eles se doutoraram). Beneficiei de excelentes professores que, como Veiga Simão, se tinham formado em Inglaterra e me transmitiram a física moderna. Assim, passados cinco anos, terminei o curso, na especialidade de Física Teórica. O meu primeiro congresso foi em 1978, na Fundação Gulbenkian, o 1.º Encontro da Sociedade Portuguesa de Física (SPF), fundada em 1974. Logo que acabei o curso fui convidado para dar aulas como assistente.
Nessa altura
passou pela UC uma delegação alemã que queria reforçar a cooperação académica e
fui aliciado a fazer um doutoramento na Alemanha: fi-lo na Universidade Goethe,
em Frankfurt am Main, entre 1979 e 1982. Nesse tempo, os doutoramentos em
Portugal eram raros e demorados, ao contrário do que sucedia lá fora. No ano em
que defendi a minha tese, só houve 130 novos doutores portugueses, a maior
parte deles no estrangeiro. Para verificar a transformação que o país realizou
na ciência, basta olhar para a PORDATA e ver que, em 2022, foram concluídos 2317
doutoramentos, a maioria em Portugal: nos 40 anos entre 1982 e 2022, o número
de novos doutorados aumentou quase 20 vezes. Destaco o facto de hoje haver mais
doutoramentos de mulheres do que de homens, reflectindo a ascensão social das
mulheres que Abril proporcionou. Se em 1982 os investigadores em Portugal
publicaram 388 artigos científicos, em 2022 publicaram 30.078, quase 80 vezes
mais. Tal crescimento só foi possível graças a um grande salto no financiamento
da ciência. Em 1982 só se investiu 0,3% do PIB, mas em 2022 o valor já foi de
1,7%, quase seis vezes mais (aquém, contudo, da média europeia de 2,2%).
Regressado a Portugal aos 26 anos participei, como
professor da UC e investigador do Centro de Física Teórica, apoiado pelo Instituto
Nacional de Investigação Científica (INIC), antecessora da Fundação para a
Ciência e Tecnologia, em lutas pelo aumento do financiamento para ciência. Estive
de estada sabática na Universidade Tulane, em Nova Orleães, nos Estados Unidos, em
1990, onde trabalhei com John Perdew, com quem escrevi um artigo com um número
record de citações. Tinha conhecido, em 1984, José Mariano Gago numa
Conferência de Física em Évora da SPF. Demo-nos muito bem: partilhávamos os mesmos
ideais. Foi, por isso, com júbilo que o vi encabeçar o primeiro Ministério da
Ciência e Tecnologia, em 1995. Em 1998 contribuí para a criação do Centro de
Física Computacional, na UC, onde promovi a criação do Laboratório de
Computação Avançada, que tem albergado alguns dos maiores supercomputadores
nacionais (o laboratório foi inaugurado pelo ministro em 1999). Dirigi o novo
Centro, hoje integrado no Centro de Física de Coimbra. Mariano Gago, ministro em dois governos de Guterres e dois de Sócrates, foi, sem dúvida, a
figura de mais relevo na ciência em Portugal nos últimos 50 anos.
Interessei-me desde cedo pela difusão da cultura científica: participei nos primeiros projectos do Ciência Viva (num tempo em que essa agência era inovadora: hoje, paralisada na rotina, é uma pálida sombra do que foi). Interessei-me pela produção e experimentação de software educativo, pois havia que aproveitar a enorme transformação digital em curso (o IBM-PC é de 1981 e a World Wide Web é de 1989). Em 2008 criei, com a ajuda de Mariano Gago, o Rómulo - Centro Ciência Viva da UC, um moderno centro de recursos educativos, que entretanto a Ciência Viva, sem qualquer razão, extinguiu. Participei no esforço de difusão da ciência com livros (o meu primeiro livro, Física Divertida, saído na Gradiva, a editora de Guilherme Valente, em 1991, foi um best-seller; escrevi depois mais 70, sem o mesmo êxito), artigos em jornais e revistas (hoje escrevo no Correio da Manhã), sites, podcasts e programas de rádio e TV.
Desde há dez anos dirijo a colecção Ciência Aberta da
Gradiva. Um ano marcante da Física em Portugal foi 2005 - Ano Internacional da
Física, que celebrou o centenário do annus mirabilis de Einstein: nesse
ano recebi a Ordem do Infante D. Henrique. Ajudei na criação do Museu de
Ciência da Universidade de Coimbra, inaugurado em 2006 e premiado
internacionalmente (nos últimos anos tem estado meio inerte).
Fui director da Biblioteca Geral da UC de 2004 a 2011.
Empenhei-me na sua modernização, ajudando a concretizar repositórios digitais. Publiquei
numerosos manuais escolares, de Física e Química, para todos os graus de
ensino, na Texto Editora. Na Fundação Francisco Manuel dos Santos, dirigi o programa de
conhecimento. Ajudei a fundar em 2013 uma startup, a Coimbra Genomics, no Biocant, Cantanhede,
apercebendo-me do caminho que ainda falta percorrer para aliar a ciência à
economia.
Aposentei-me em 2021, para dar o meu lugar aos mais novos
e ter mais tempo para desafios da sociedade. Infelizmente, não vejo que os
jovens estejam a beneficiar das oportunidades semelhantes às que tive. A
ciência, embora tendo crescido muito desde 1974, conheceu períodos de
retrocesso, designadamente após a intervenção da troika. Hoje, a ciência
portuguesa podia e devia estar melhor. O seu desenvolvimento é uma das marcas
de Abril. Continuar esse caminho é cumprir uma das esperanças que se abriram há
50 anos.
50 ANOS DE CIÊNCIA EM PORTUGAL
Meu artigo no último JL:
O 25 de Abril de 1974 fez
florescer a ciência em Portugal. De facto, o Estado Novo não foi «amigo» da
ciência, como mostra não apenas o reduzido investimento nessa área, mas também o afastamento de numerosos cientistas pela
sua oposição ao regime. A moderna indústria baseia-se na ciência, mas António
de Oliveira Salazar ansiava que Portugal fosse «o magnífico pomar e a
esplêndida horta da Europa» e defendia que «se tivesse de haver competição,
continuaria a preferir a agricultura à indústria». Não admira, por isso, que a nossa
industrialização tenha sido tardia: só em 1963, depois dos outros países industriais
europeus, o valor do produto industrial ultrapassou o da agricultura. Franco
Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros, afirmou em 1969: «A ciência e a
técnica (…) são monopólio dos povos ricos e altamente desenvolvidos». Quanto
muito, a investigação teria relevância no «Ultramar», onde haveria que explorar
os recursos locais, conforme defendeu Marcello Caetano, que foi ministro das
Colónias.
Apesar
de tudo, houve no regime deposto em 1974, alguns esforços em prol da ciência, mais
da aplicada do que da fundamental. Assim, por exemplo, em 1946, foi inaugurado
o Laboratório Nacional de Engenharia Civil e, em 1961, foi inaugurado o Laboratório
de Física e Engenharia Nucleares, em Sacavém, prevendo-se a construção de
centrais nucleares, que nunca se concretizaram. Na medicina, área na qual houve
incrivelmente em 1949 um solitário Nobel português nas ciências (o neurologista
António Egas Moniz), o Estado procurava acompanhar os grandes progressos que se
desenrolaram ao longo do século XX.
Um
forte condicionante do desenvolvimento da ciência era o défice de educação. De
facto, a educação era apenas acessível a uma reduzida fatia da população. Este
estado de coisas só começou a mudar significativamente no início dos anos de
1970 com a reforma do ministro da
Educação José Veiga Simão, o professor de Física da Universidade de Coimbra que
tinha sido o primeiro Reitor da Universidade de Lourenço Marques. Ele pugnou pela
democratização do ensino, incluindo o superior.
Mas Abril foi uma explosão, não só com a criação de um clima de liberdade, indispensável à criação intelectual (em particular nas ciências sociais e humanas), mas também pelo alargamento da escolaridade (o ensino superior aumentou com a criação de novas escolas) e pelo maior investimento na investigação. Este último foi particularmente impulsionado pela entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, antecessora da actual União Europeia, em 1986, quando Mário Soares era primeiro-ministro. Parte dos fundos europeus foi aproveitada para formação de pessoas e criação de infraestruturas científicas e técnicas.
Um ano decisivo foi o de 1995, quando foi criado, no primeiro governo de António Guterres, o Ministério da Ciência e Tecnologia, pasta atribuída a José Mariano Gago, professor de Física da Universidade Técnica de Lisboa. Mariano Gago, que foi ministro em dois governos de Guterres e dois de José Sócrates (nestes, juntando o Ensino Superior), foi, sem dúvida, a figura de mais relevo na ciência em Portugal nos últimos 50 anos. Ele pôs em prática com sucesso um plano de modernização e internacionalização da ciência portuguesa, anunciado no seu Manifesto para a Ciência em Portugal (Gradiva, 1990).
Criou em 1996 a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), herdeira de
organismos como a Junta Nacional para a Investigação Científica e Tecnológica
(JNICT) e o Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC), que tem apoiado
a formação académica, projectos de investigação e laboratórios. Montou um sistema
de ciência e tecnologia, com uma rede de centros de investigação em todas as
áreas, não esquecendo a cultura científica (criou a Agência Ciência Viva,
ultimamente muito apagada). Em 2000 surgiram os primeiros Laboratórios Associados.
Portugal, que tinha entrado para a Organização Europeia de Investigação Nuclear
(CERN) em 1985, entrou para a Agência Espacial Europeia (ESA) em 2000 e para o
Observatório Europeu do Sul (ESO) em 2001. No lado privado, juntando-se à Fundação
Gulbenkian, que desde 1961 detinha o Instituto Gulbenkian de Ciência, um laboratório
de biomedicina, apareceu em 2004 a Fundação Champalimaud, na mesma área.
Para
verificar a transformação que o país realizou na ciência, basta olhar para a
PORDATA e ver que, em 2022 (último ano para o qual há dados), havia quase
60 000 investigadores, ao passo que em 1982 (quando acabou o Conselho da
Revolução) não chegavam a 5000, um aumento de mais de dez vezes. Medidas
inequívocas de produtividade científica são a formação de novos doutores, a
publicação de artigos científicos e o registo de patentes. Em 2022 foram
concluídos 2317 doutoramentos: nos 40 anos entre 1982 e 2022 o número de novos doutorados
aumentou quase 20 vezes. Destaco o facto de hoje haver mais graus de mulheres
do que de homens, reflectindo a ascensão social das mulheres que Abril
proporcionou. Se em 1982 os investigadores em Portugal publicaram 388 artigos,
em 2022 publicaram 30 078, quase 80 vezes mais. Nas patentes houve um
crescimento: se, no início dos anos de 1980, não havia pedidos na Via Europeia,
em 2022 foram 312, das quais foram concedidas 67. Tal crescimento só foi
possível graças a um crescimento da escolaridade da população e, claro, a um grande
salto no financiamento. Em 1982 só se investiu na ciência 0,3% do PIB (dos
quais 0,1% do lado das empresas), mas em 2022 o valor já foi de 1,7% (dos quais
1,1% do lado das empresas), quase seis vezes mais.
Abril
proporcionou, portanto, um big bang da ciência em Portugal. Mas não nos podemos
impressionar pelo crescimento relativamente ao passado (estávamos muito
atrasados!), antes devendo ver os números portugueses à luz de comparações
internacionais, em particular a europeia. O referido investimento de 1,7% está aquém
da média europeia de 2,2% (a Bélgica, a Suécia, a Áustria, a Alemanha e a Dinamarca
lideram, com índices acima dos 3%). Mas há pior: os fundos do Orçamento de Estado
para a ciência são só cerca de 0,4% do PIB, um número comparável com o do
início dos anos 1990, em nítido contraste com a média europeia de 0,7%. No
número de investigadores comparamos bem com a média europeia, se dividirmos
pelo número de pessoas activas, estando, na participação feminina, bem acima da
média europeia. No número de novos doutores, apesar do esforço realizado,
estamos abaixo dessa média. No número total de doutores de pessoas em idade activa
(18 aos 24 anos) ainda estamos abaixo da média europeia (não há, portanto, doutores
a mais!). E, no número de artigos por habitante, conseguimos estar um pouco
acima da média europeia, o que já não acontece se considerarmos os artigos que
estão no top 10% dos mais citados, índice em que estamos um pouco
abaixo: mesmo assim, estes dados mostram que os investigadores em Portugal
conseguem fazer omeletes com poucos ovos. Onde a porca torce o rabo nas
comparações internacionais é nas patentes: a nossa posição ainda é na cauda da Europa.
E o mesmo se aplica a outros índices que traduzem o impacto da ciência na
economia, como o capital de risco aplicado relativamente ao PIB e a exportação
e produtos de alta tecnologia relativa ao total de exportações. O Global Innovation
Index de 2021, que aglomera vários índices de inovação, dá a Portugal o 31.º
lugar no mundo, que corresponde ao 18.º lugar da União Europeia. Há muito
caminho para percorrer.
A ciência, embora tendo crescido bastante desde 1974, conheceu
períodos de retrocesso, designadamente na última década (a intervenção da troika
em 2011 foi um duro golpe do qual tem custado recuperar). Gostaria de dizer que
a ciência portuguesa está bem e se recomenda, mas só posso dizer que se
recomenda. Não está bem: podia e devia estar melhor. Não é só a ligação às
empresas que tem de melhorar (não descurando evidentemente a ciência
fundamental), é também a ligação ao ensino superior, que está subfinanciado, designadamente
através da contratação de doutores, que têm vivido em situação precária, vendo-se
alguns obrigados a emigrar, e o reforço dos Laboratórios de Estado, que têm
sido preteridos em favor dos Laboratórios Associados. O desenvolvimento da
ciência é uma das marcas maiores de Abril. Continuar esse caminho é cumprir uma
das esperanças que se abriram há 50 anos.
quinta-feira, 18 de abril de 2024
A ARTE DE INSISTIR
Quando se pensa nisso o tempo todo,O grande físico Isaac Newton, tendo-se-lhe perguntado como se descobre a lei da gravitação, respondeu: “Pensando nisso o tempo todo.”
alguma descoberta se consegue.
Que uma ideia venha ao engodo
e o espírito desassossegue,
nela se concentrando, sem parar,
e talvez um dia se faça luz,
permitindo, enfim, iluminar
um mistério debaixo de um capuz.
Uma ou duas ideias, numa vida,
desde que sejam ideias das boas,
valem bem uma vida investida
numa ideia que, certeira, arpoa!
Mesmo não acertando, insistir
é o melhor modo de conseguir.
Eugénio Lisboa
quarta-feira, 17 de abril de 2024
DIREITOS E DEVER(ES)
Nota-se nessas proclamações uma dominância dos deveres sobre os direitos, ao contrário das formulações atuais, que se perspetivam mais como garantia de direitos.
A declaração é nitidamente um ideal a que se procura vincular a crença e a prática dos homens numa perspetiva de dignificação da singularidade e da comunidade. Se essa crença e essa prática fossem efetivas, a declaração era redundante. Disto é bem exemplo o primeiro período do artigo primeiro da declaração pós-revolução francesa: «os homens nascem e são livres e iguais em direitos».
A abordagem dos deveres suscita hoje uma recusa primária por associação direta com a sujeição a ordens ou interesses de outrem e, por isso, com a falta de liberdade ou mesmo ofensa à dignidade da pessoa.
Historicamente, o acontecimento marcante dessa nova perspetiva foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – possível de se ver na sequência da Declaração de Direitos de 1689 ou até da Magna Carta, de 1215 – saída da revolução francesa. Na prática, seguiu-se o regime de terror, em que ninguém tinha garantida sequer a ligação da cabeça ao tronco.
Mas, recuando vinte e seis séculos, podemos constatar que nos atenienses se inverteu a relação entre direitos e deveres aquando da invasão persa: antes, o cidadão usufruía de direitos conforme o que fazia e pelo bem da polis; depois, se os invasores se consideravam senhores de direitos, os atenienses passaram para eles o dever de cuidar do bem público e exigiram direitos para si.
É bem conhecida a posição de Kant, segundo a qual as coisas têm preço e só o homem tem dignidade. O tema dos direitos e dos deveres pode ser reduzido, em termos práticos e de fundamentação, a esta perspetiva. Ou seja: a exigência de direitos e a imposição de deveres tanto remetem para a justificação do que o homem faz ou evita, como manifesta o grau de dignidade atingido.
É nesta perspetiva que o título tem o termo dever no singular e no plural.
Não tem, portanto, sentido, considerar o homem como um sujeito de direitos sem mais. Esta perspetiva existencialista foi importante para superar uma visão essencialista apoiada na religião e na monarquia absoluta – ou nas ditaduras modernas –, mas não é exequível por si mesma. E a confirmá-lo está a infeliz afirmação do existencialista ateu Sartre, segundo o qual ‘o inferno são os outros’. A afirmação só teria sentido sob a forma de lamento quanto à impossibilidade – por deficiência, circunstância ou falha de vontade – de muitos homens conseguirem afirmar a sua dignidade no saber, na solidariedade, no aperfeiçoamento ético, etc.
De facto, como reconhece Santabárbara (2019, 47), o que a experiência nos mostra é desigualdades não provocadas intencionalmente, contingências determinantes, barreiras intransponíveis, etc. De modo que os outros, agindo consciente e voluntariamente na procura do aperfeiçoamento, isto é, com liberdade e responsabilidade, são antes um apoio na construção da humanidade – de que cada um participa e de cuja qualidade beneficia.
Associar a dignidade do homem à igualdade de direitos pode exigir que se fundamente essa dignidade. O autor citado remete para uma fonte transcendente – uma divindade – a mesma que fundamenta a igualdade entre os homens baseada na criação idêntica ou mesmo na filiação divina.
O mais que uma fundamentação transcendente poderia justificar é o que se pode chamar dignidade constituída, ou seja, aquela a que se refere Kant, isto é, que cada homem, por ser homem, deve ser tomado como fim e não como simples meio.
Não se nega de forma alguma o papel das lutas sociais e pessoais de reivindicação de direitos. Mas assim como não é justificável que, depois de adquiridos, não tenham como correspondência o dever pessoal e social de melhoria, no que depende dos ‘beneficiados’, também qualquer direito atribuído não poderá ser objetivamente satisfeito se não houver quem cumpra o dever correspondente.
segunda-feira, 15 de abril de 2024
OS HABITANTES DA ESCURIDÃO
Os canalhas não gostam do ar puro,
por isso gostam sempre de o sujar.
Buscam o escuso e o escuro.
para aí poderem chapinhar.
As suas mordidelas são medalhas,
ao peito dos a quem eles perseguem.
Não são vistos em esbeltas batalhas,
não havendo honra que não reneguem.
Quem vive no escuro, escuro fica
e toda a claridade lhe faz ferida!
E quem, da claridade, cedo abdica
verá que a sua vida é avenida
que o leva a seguro inferno,
onde nada mais há do que inverno.
Eugénio Lisboa
A ALMEDINA CELEBRA O 25 DE ABRIL COM TRÊS CONVERSAS EM COIMBRA
As Conversas Almedina são uma iniciativa de difusão cultural, organizada por Carlos Fiolhais, na Livraria Almedina Estádio de Coimbra, desde há mais de um ano. Por lá têm passado, em sessões informais, numerosas figuras nacionais como Lídia Jorge, João Luís Barreto Guimarães, Maria de Lurdes Rodrigues, David Justino, Álvaro Garrido, Manuel Antunes, José Jorge Letria, Carlos Vaz Marques, José António Saraiva, José Gardezaabal, Maria do Rosário Pedreira, Luís Quintais, etc.
Na semana que antecede o 25 de Abril haverá três apresentações em dias sucessivos, que servirão para celebrar aquela data:
1- A 17 de Abril, 18 horas, o escritor Miguel Real, que verá o seu romance O Último Minuto na Vida de José Saramago ser apresentado por António José Borges, fará um panorama do romance pos-25 de Abril, onde obviamente entra Saramago.
2- A 18 de Abril, o editor Manuel Fonseca, da Guerra & Paz, verá o seu livro 25 de Abril. No Início Era o Verbo, em coautoria com o desenhador Nuno Saraiva, ser apresentado por Carlos Fiolhais; o livro regista as frases do 25 de Abril, incluindo algumas de humor anarquista.
3- A 19 de Abril, o historiador francês Yves Léonard verá o seu livro Breve História do 25 de Abril ser apresentado por Cristina Robalo Cordeiro e por Carlos Fiolhais; a obra é um resumo por um observador independente da mudança que ocorreu em Portugal há 50 anos.
Combinando a literatura, a arte, a história e a política, a Revolução Portuguesa será assinalada na maior livraria da editora sedeada em Coimbra.
Convidam-se todos os interessados: a entrada é livre, havendo
oportunidade de diálogo com os autores e apresentadores, para além
de autógrafos das obras em causa
Para mais informações sobre estes eventos contactar a editora ( Bruno Mano <bmano@grupoalmedina.net> ) ou o organizador (<cfiolhais@gmail.com>).
Manuel Alegre, e as suas (e nossas) memórias
O que talvez explique nele essa mistura, hoje difícil de entender por muitos, da liberdade e intervenção política de esquerda com patriotismo e orgulho pela história de Portugal e sua epopeia. É por isso quase uma biografia de um certo Portugal que lutou contra o Estado Novo, mas através da visão lírica sofrida de um poeta interventivo, com gosto pela peripécia aventurosa e simultaneamente com propensão para a evocação sentimental da nossa história e da sua lírica inigualável.
Há uma linha temporal que vai estruturando a evocação, um filme dos acontecimentos por ele vividos e relatados à luz duma perspetiva pessoal, frequentemente poética, mas entretecidos com acontecimentos políticos, uns maiores, outros menores, de cuja amplitude temos agora a noção verdadeira mas que não se tinha no tempo em que foram vividos. Voltamos a sentir o Portugal dos últimos anos do salazarismo, vividos entre o desânimo de que a asfixia política nunca mais acabaria e a esperança de que um dia havia de ser.
Sobre a sequência mais ou menos linear dos acontecimentos, mas com recuos e desvios frequentes para evocações preferenciais, há uma linha, uma estrutura de base onde vão sendo inseridos, através de pequenos capítulos, com título e tudo, memórias particulares de pessoas, reuniões, debates, fugas, projetos, conspirações, disputas, leituras, através das quais os acontecimentos em Portugal e fora dele vão evoluindo.
É uma espécie de lançadeira que entra e sai, em que os acontecimentos vão sendo evocados, às vezes repetindo-se, numa sequência que é simultaneamente temporal e sentimental, e que têm, por isso, a dupla missão de falar do poeta, da sua vida e, a partir do que vai evocando, acabar por contar grande parte da história recente de Portugal. É por isso também um roteiro sentimental, em que se sente o seu afeto pelo país e por aquilo a que se costuma chamar de portugalidade, O livro tem ainda, para todos os que viveram por esse tempos, ou depois, em Coimbra, um interesse particular. Manuel Alegre dá, da vida estudantil coimbrã, dessas duas ou três décadas, uma ideia viva e rica, que é ocultada por todos os que, vindos depois, e de fora, gostam de realçar o conservadorismo da academia.
Coimbra tinha (com tem ainda) um poder encantatório que a todos envolvia, e uma grande dinâmica cultural, e mesmo política, embora esta em registos mais restritos. Tertúlias, representações teatrais, reuniões, conferências, ciclos de teatro e cinema, jogos de futebol, assembleias magnas, lutas e lutos académicos constituíam um caso único em Portugal, até pela concentração geográfica e estudantil que multiplicava os seus efeitos.
Sobre este ponto de vista Manuel Alegre está muito bem posicionado, porque teve a sorte de encontrar em Coimbra alguns grandes cantores e guitarristas das últimas gerações, como António Portugal e António Brojo, colaborar na renovação da música ligeira de Portugal, que saiu do fado de Coimbra através da inspiração de José Afonso e depois Adriano Correia de Oliveira e de outros, e que depois foi dominante no período pós revolucionário. E é a ele que, quer se queira quer não, se ficou a dever alguma da poesia mais interventiva e dinamizadora contra a ditadura e a guerra colonial. Como todos sabem, de alguns dos seus poemas se fizeram entusiasmados cânticos de luta e de liberdade.
Dir-se-á, ao ler estas memórias, que acentuam a ideia de um certo romantismo fora de época, mas que se coaduna bem não só com Coimbra e o seu tempo, mas que vai muito para além disso, porque se inscreve numa tradição poética e aventurosa, à moda de Camões, e de luta política e também vida poética, à moda de um Garrett, por exemplo. Sente-se-lhe a vontade de ser inserido nessa tradição, mas não se vê razão para o não fazer, porque a vida dele tem essas diversas dimensões.
A vida de militar no norte de Angola, o desterro nos Açores, a fuga à prisão, o exílio em Argel, a “Voz da Liberdade”, as conspirações, os tempos de Paris e, por fim, o 25 de Abril, constituem um itinerário invejável e de que muitos outros gostariam de se orgulhar. E mesmo as suas atividades políticas posteriores – como as candidaturas à Presidência da República - devem ser vistas como uma necessidade de intervenção, talvez até de protagonismo, não só político mas ainda literário (Teixeira Gomes, Teófilo Braga) e sempre, tudo o indica, com algumas linhas de estruturação moral e cívica que são de assinalar porque não se encontram em todos.
Há ainda outros aspetos muito interessantes relativos aos acontecimentos pós 25 de Abril, ao chamado Verão Quente, e ao 25 de Novembro, que alguns agora tentam apagar, esquecidos que há muitos que ainda disso se lembram muito bem. Manuel Alegre, sem pretender fazer uma história dos acontecimentos, dá-nos uma visão das forças em jogo e da seriedade e gravidade do que se viveu. E de como ficamos a dever a alguns a liberdade de que hoje podemos usufruir.
Nem todos gostam dele, os mais retrógrados e politicamente saudosistas, verão sempre nele o desertor, outros o militante comunista que se desvinculou do PCP. Ora, sabemos como nem uns nem outros esquecem, e muito menos perdoam coisas destas, por muito justificadas e forçadas pelas circunstâncias que tenham sido. Mas a história é feita também pelos outros, e os acontecimentos não desaparecem só porque alguns os rejeitam ou não os sabem acompanhar. E como a poesia de Manuel Alegre é daquelas que dá gosto ler, e nos diz muito, e não das que, como dizia Eugénio Lisboa, têm como supremo ideal o não dizerem nada, é bom saber o muito que está por detrás dela e a motivou.
"Um professor é um professor..."
Um professor não é um iniciador...
Um professor não é um mediador...
Um professor não é um autor...
Um professor não é um treinador...
Um professor não é um produtor...
Um professor não é um gestor...
Um professor não é um prestador de serviços...
Um professor não é um pai (nem uma mãe)...
Um professor não é um companheiro...
Um professor não é um amigo...
Um professor não é um líder...
Um professor não é um ativista...
Um professor não é um conselheiro espiritual...
Um professor não é um conselheiro emocional...
Um professor não é um sedutor...
Um professor não é um motorista...
Um professor não é um guia...
Um professor não é um comunicador...
Um professor não é um moderador...
Um professor é um professor...
Jorge Larrosa, 2019, p. 329
sábado, 13 de abril de 2024
À GUISA DE INTRODUÇÃO
Por A. Galopim de Carvalho
Sem me ter dado conta de que o estava a fazer, iniciei praticar divulgação de conhecimentos durante a adolescência, no mundo rural, um mundo que conheci razoavelmente bem como praticante, activo e interessado, de um campismo selvagem nos campos do Alentejo, o longo dos anos de 1940. Foi no convívio com os camponeses que, em trocas de saberes, surgiu e se consolidou este meu interesse por partilhar muitos dos meus então pouco consolidados saberes.
“Velhos são os trapos” diz muito boa gente, preferindo usar o termo idoso que, assim, se generalizou. Mas pior do que ser velho ou idoso é ser pensionista contra vontade, como no meu caso, estupidamente afastado do serviço activo e colocado na “prateleira” por imposição do “limite de idade”. Foi o que me aconteceu. Ser descartado é um sentimento que magoa os velhos, em especial aqueles a quem a Natureza, embora os tenha diminuído fisicamente, deixou intacta a lucidez. Velhos que gostam de ser tratados, não pelos muitos anos que a tradição rotula de velhos, mas pelo que conservam de vigor, energia e entusiasmo.
Divulgar a ciência que cultivei como geólogo e professor de geologia, e tudo o mais que aprendi como curioso de muitas “artes”, foi a opção que tomei no sentido de tornar útil e agradável o meu tempo de pensionista. Desde então que reparto as horas a meu belo prazer, e dele fazem parte, entre outras ocupações, transmitir, pela palavra escrita e falada, o que a vida em sociedade e a profissão me ensinaram, a par de uma intervenção cívica que entendo dever ter como cidadão atento que nunca deixei de ser. Os vinte e dois anos de aposentação permitiram-me ler, com o empenho de quem estuda, temas que a absorvência da vida profissional sempre colocou fora do alcance da minha mão. Assim, “embalado” no ofício de professor, de estudar para ensinar, dei por mim a escrever sobre temas de arte, história, filosofia e outros e, ainda, sobre tudo o que a vida me ensinou.
Os textos que, com propósitos científicos e pedagógicos, de há muito venho divulgando, em livros e em textos avulsos nas redes sociais, têm como destinatários preferenciais os professores que, nas nossas escolas básicas e secundárias, se debatem com falta de elementos que complementem os tradicionais e repetidamente estereotipados manuais de ensino. Visam, ainda, o cidadão comum, interessado em conhecer o chão que pisa e lhe dá o pão. Continuo a escrever muitas horas por dia, indiferente a sábados, domingos, períodos de férias ou dias feriados. Isto porque os reformados estão sempre em férias e porque as férias servem para se fazer aquilo de que se gosta. A verdade é que, quando estou frente ao monitor, seguindo as palavras que, letra a letra, os dois indicadores vão dedilhando, num esforço de acompanhar e não deixar perder as ideias que fluem velozes, a verdade é que, dizia eu, não tenho idade nem as mazelas próprias dos gerontes. E, assim, o tempo se foi transformando em palavras sem que o tivesse visto passar.
Não sei quantos anos mais poderei desfrutar desta bela condição de poder sentir a vida. Serão certamente muito poucos, mas isso não me incomoda. Estou perfeitamente consciente das limitações físicas que os anos me impuseram, mas feliz, de bem comigo, com os outros e com o mundo. Já o disse várias vezes e volto a dizer que conservo comigo a criança irrequieta, curiosa de tudo e alegre que fui, o adolescente, inconformado, contestatário, audacioso e irreverente, próprio desses anos. Conservo também o adulto na força da vida, lutador que não dá tréguas e o velho que, a tudo isso, acrescenta a sabedoria, a paciência, a ponderação e a tolerância que os muitos anos ensinaram.
Quando, em 1977, o saudoso Prof. Rocha Trindade me convidou para integrar o grupo de professores do igualmente saudoso Ano Propedêutico, confrontei-me com a necessidade de escrever, semana a semana, capítulo a capítulo, os textos de apoio (os ap) que marcaram uma geração de portugueses agora a raiarem os 60 anos. Foi uma magnífica e saborosa experiência. Foi mais como divulgador do que como académico, usando de toda a liberdade que o sistema consentiu, que redigi as mais de quatro centenas de páginas desses textos, um êxito editorial com muitos milhares de exemplares vendidos.
Nos 20 anos que exerci funções de direcção no Museu Nacional de História Natural (1983 a 2003), o meu gosto e empenho em divulgar conhecimento teve plena realização nas muitas exposições que ali tiveram lugar, com destaque para as organizadas em torno do tema dinossáurios. Devo dizer que, no conjunto com os funcionários deste Museu, todos nós sem qualquer formação teórica na área da museologia e aprendendo uns com os outros, concebemos e realizámos, entre elas, “Dinossáurios Regressam em Lisboa”, em 1992, uma das mais espectaculares e concorridas exposições de que temos memória em Portugal, com mais de 360 000 visitantes em apenas onze semanas.
A “Feira de Minerais Gemas e Fósseis”, Museu Nacional de História Natural, Iniciada em 1989, completou este ano de 2023, a sua 36ª edição. Também nelas me envolvi empenhadamente, usando-as como uma esplêndida via para divulgar conhecimentos em domínios da mineralogia e da paleontologia. A aceitação do público, das crianças aos adultos foi, desde a primeira, muito grande, testemunhada todos os anos por milhares de visitantes, tendo-se alargado ao Porto e a Coimbra, com regularidade anual, e a outras cidades com realizações esporádicas.
O gosto pessoal que sempre tive pela divulgação, actividade que sinto como uma forma feliz de conviver e confraternizar com gente de todas as idades e condições sócioculturais, fez com que. nos vinte e dois anos que se seguiram à minha jubilação, intensificasse a escrita, quer em livros (uma vintena) quer em textos avulsos (alguns milhares) nas redes sociais, a par da de conferencista que trazia da chamada “vida activa”. A pandemia, que nos últimos tempos nos atingiu, levou-me a recorrer à modalidade de videoconferências via “zoom”, prática que continuo a utilizar nos casos em que os convites me chegam de localidades suficientemente afastadas da minha residência.
Mesmo antes da jubilação acontecia muitas vezes acordar a meio da noite a pensar neste ou naquele problema de entre as matérias em que investigava ou ensinava. Sentia então uma irresistível vontade de me levantar, sentar-me à secretaria e trabalhar nele, ao mesmo tempo que, para lá dos vidros da janela do escritório, assistia ao clarear da manhã. Este hábito transformou-se num prazer e, respondendo ao desafio formulado por alguns dos meus mais de 33 500 leitores, de passar a livro muitos dos textos que diariamente, desde 2015, venho publicando no Facebook, eis-me a dar-lhes satisfação. “Ao Romper da Aurora” nasceu neste contexto e como resposta ao dito desafio.
ELOGIO DA TRANSMISSÃO
Sou frequentemente interpelada acerca da necessidade e, sobretudo da pertinência, de o professor transmitir informação aos seus alunos, sobretudo neste tempo em que toda (?) a informação está disponível, ao alcance dos alunos a qualquer hora e momento. Vejo confundir-se a "transmissão", que o professor faculta aos alunos, com memorização mecânica, entendendo-se que isso perturba o desenvolvimento de capacidades como a compreensão e a criatividade, a iniciativa e a autonomia.
Não vou discutir a ideia porque Tania Alonso Sáinz, jovem professora de Ciências da Educação, mais concretamente de Teoria da Educação, da Universidade Complutense de Madrid, por certo, tão interpelada quanto eu sou, fê-lo primorosamente, num texto acabado de publicar na imprensa espanhola (aqui).
Nota: Permito-me colocar ligações para obras e textos que menciona.
[A] crise da transmissão tem a ver com muitos factores, mas principalmente com a falta de amor ao mundo herdado que reflecte no desprestígio do saber em favor do entusiasmo pela informação à distância de um 'click'; e com o consequente esboroamento da missão da escola e dos professores, e também do que era a sua fonte mais legítima de autoridade: serem representantes da cultura e do saber. O que, há mais de um ano, ouvimos dizer à nossa ministra da Educação, que «na era da inteligência artificial» já não é preciso acumular conteúdos» é uma boa síntese da desconfiança social do poder transformador do saber no desenvolvimento da pessoa (…).
Este é o argumento de Cécile Ladjali, professora de Literatura numa escola secundária de um bairro parisiense pobre, mesmo que os seus colegas lhe sugerissem que, para ser inovadora e motivadora, deveria proporcionar mais ´hip-hop´ e menos Shakespeare. Este é o mesmo grito do professor de música Alberto Royo quando, num acalorado debate televisivo, perguntava de que maneira inovadora poderia ensinar uma sonata aos seus alunos sem os enganar, isto é, não buscando só diversão mas, sobretudo, a aprendizagem para poderem passar para um outro nível de fruição.
Assim, não é de estranhar o mal-estar docente a que assistimos (…), professores obrigados a educar sem transmitir (…). Diz-se que são imprescindíveis para salvar as trajectórias dos estudantes, ainda que sejam responsabilizados pelo seu baixo rendimento. Salvadores mas culpados. Além disso, são instados, a partir dos organismos internacionais a aumentar o grau de autonomia do seu exercício e juízo profissional ao mesmo tempo que se obrigam a prestar mais contas, num 'tsunami' burocrático que os sufoca. Autónomos, mas burocratizados. Diz-se que são as pedras angulares do sistema educativo, mas espera-se que sejam facilitadores, sem intervir na construção autónoma da aprendizagem dos alunos, numa espécie de apagamento da sua função de transmissores da cultura e do saber. Pedras angulares mas prescindíveis.
A autoridade docente residia na sua tarefa clássica de transmitir. Num contexto de multiplicação de tarefas, a sua missão descentra-se, polarizando o debate entre a educação tradicional e progressista, entre inovar e conservar, entre ‘professáurios’ e ‘eduinovadores’, e entre conteúdos e competências. Discussão mentirosa porque é impossível educar, do mesmo modo que é impossível inovar no vazio, ou ser competente sem tem nada na cabeça.
Um docente que passa oito horas por dia com crianças e jovens quer que o deixem exercer a sua função, que não é a de psicólogo nem terapeuta, ainda que o seu trabalho tenha um efeito sanador.
Eugénio Lisboa, e para sermos justos
Por João Boavida
Neste momento da sua morte três ideias me parece justo realçar. A primeira é a de lealdade para com os seus amigos. Admirador de José Régio desde os tempos do seu serviço militar em Portalegre, e da tertúlia à qual também pertenceu, nunca deixou de estudar e valorizar a sua obra nem correu atrás de outras quando os ventos poéticos começaram a soprar noutras direções.
Devemos-lhe uma constante atenção à obra de Régio, publicando artigos, organizando antologias, coordenando a publicação das suas obras completas, participando em congressos e, sobretudo, chamando continuamente a atenção para a variedade, a complexidade e a riqueza dessa obra. A propósito, veja-se o livro coordenado por Filipe Delfim Santos, José Régio, correspondência com Eugénio Lisboa, editado em 2016 pela Imprensa Nacional. Pelas cartas, pelo prólogo do próprio Eugénio Lisboa, pelas riquíssimas e variadíssimas notas de rodapé e o índice onomástico com suas inúmeras referências, o livro tem grande interesse para o conhecimento do Portugal literário, cultural e até político da segunda metade do século XX.
Mas não só como crítico e estudioso da obra de Régio que Eugénio Lisboa nos deve interessar. As suas memórias - Acta est fabula (Lisboa, Opera Omnia) em cinco volumes - é um belíssimo “filme” da sua vida, sempre com a realidade cultural, social e política em pano de fundo, o que muito contribui para a compreensão do seu (e nosso) tempo.
Era um homem do mundo, viveu em vários países, tinha grande formação tanto científica como literária, o que lhe permitiu desempenhar com competência e brilho funções de relevo em áreas muito diferentes. Além disso era um poeta (A matéria intensa, O ilimitável oceano, Poemas em tempo da peste, etc., são alguns dos seus títulos).
Atento e interventivo, com grande facilidade escrevia sonetos e outros géneros, frequentemente críticos, muitas vezes ácidos e até cáusticos sobre os desmandos do mundo e os que, nele, tudo mandam. Veja-se, a este propósito, o livro forte, de dor, de indignação e até furor Poemas em tempo de guerra suja (Lisboa, Guerra & Paz, 2022) sobre os horrores da invasão da Ucrânia e Putin, destruidor de vidas e de cidades.
A outra justiça a fazer-lhe é a de que sempre foi fiel aos seus grandes autores. Sendo desde jovem um leitor voraz, pôde adquirir, com o incomparável prazer da leitura, uma escala de valorização literária que o orientou com segurança toda a vida. Os seus quadros de referência eram vastíssimos e o seu cânone sólido e bem estruturado. Aberto à novidade e a reconhecer valores novos, não corria, porém, atrás de modas, e toda a vida preservou os seus autores de referência e as respetivas obras, lendo e relendo com entusiasmo e paixão os seus enredos, conflitos e dramas. Não se coibia por isso de atacar com frontalidade os que desvalorizam o conteúdo, apagam o enredo e com experimentalismos exagerados e inovações a todo o custo frequentemente afastam os leitores e acabam por tirar-lhes o prazer de ler.
Não tínhamos em Portugal outro com esta capacidade, com referências tão seguras e simultaneamente com tal poder de luta e de intervenção. Um dos seus últimos livros – Vamos ler, um cânone para o leitor relutante (Guerra & Paz, 2021) – é uma viva e sentida iniciação à leitura, que muito útil poderá ser para os que agora passam os dias (e as noites) com o nariz metido nos telemóvel e perdem o melhor da vida.
João Boavida
(Artigo saído hoje no Diário de Coimbra).
sexta-feira, 12 de abril de 2024
DE UM NADA A OUTRO NADA
Uma vida é um curto percurso,
que vai de um nada a outro nada.
Para esses nadas não há recurso,
mas a vida pode ser bem alada!
Entre nada e nada, cabe tudo,
que nenhum nada consegue calar:
saber viver pode ser um escudo,
para, com ele, o nada burlar.
É só o que metemos no percurso
que lhe dá aura de eternidade,
do mesmo modo que o discurso
melhora, se construído com jade.
De nada a nada, pode pôr-se um mundo,
rico, prodigioso e sem fundo!
Eugénio Lisboa
quinta-feira, 11 de abril de 2024
quarta-feira, 10 de abril de 2024
A ÍSIS, COM POUCOS DIAS DE VIDA
Tinhas o tamanho da minha mão,
um trôpego tigrinho de salão
e já com muito charme de felino,
que pisava só, com pé muito fino!
Não eras ainda dona da casa,
mas olhavas já, como quem a apraza!
Há de ser só uma questão de dias,
e logo, dela, tu te aproprias.
Mesmo tropeçando, eras elegante,
com teu pelo, macio, cativante.
Teu lindo miar era de veludo,
quase entre o pedir e o ficar mudo!
O teu ar gauche prometia a beleza,
que, depois, se tornou uma certeza!
Eugénio Lisboa,
(director de recursos humanos da Ísis)
RIP PETER HIGGS (1929-2024)
Minhas declarações ao Público a propósito da morte de Peter Higgs:
A LIBERDADE COMO CONSTRUÇÃO HUMANA E FINALIDADE ÚLTIMA DA EDUCAÇÃO
"O Homem é incapaz de gerir a sua liberdade por natureza. É preciso educar-se a si mesmo. Disciplinar-se, instruir-se e finalmente, ...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
Por Eugénio Lisboa Texto antes publicado na Revista LER, Primavera de 2023 Dizia o grande dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, que ning...
-
Meu texto num dos últimos JL: Lembro-me bem do dia 8 de Março de 2018. Chegou-me logo de manhã a notícia do falecimento do físico Stephen ...