quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Excelência, diz a FCT


Numa carta aberta à FCT dois excelentes físicos (a palavra está mal gasta pela FCT, mas ainda um dia vai entre nós recuperar o significado primitivo) dão, hoje no Público, mais um testemunho do estado lamentável a que o actual governo conduziu a ciência nacional. Vitor Cardoso e Carlos Herdeiro têm toda a razão,  mas esquecem-se de uma coisa: a actual presidente interina só lá está para continuar a razia que Miguel Seabra iniciou, com o beneplácito de Nuno Crato e Pedro Passos Coelho. A actual FCT é medíocre e serve a mediocridade.

"Carta aberta à Presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Professora Doutora Maria Arménia Carrondo.

 Celebra-se este ano o centenário da Relatividade Geral, a teoria física-matemática que Albert Einstein concebeu para descrever as Leis da Gravitação e apresentou em 1915, universalmente reconhecida como um dos maiores feitos do pensamento humano.

Ao longo destes 100 anos, a Relatividade Geral tem tido um impacto incrível no entendimento do Universo. Para além disso, a sua natureza conceptual, alicerçada em perspectivas revolucionárias de espaço e tempo, tratando situações físicas enigmáticas como os buracos negros ou o "Big Bang", tem inspirado a literatura, o cinema, a arte, e alavancado a tecnologia (sendo o exemplo mais notório o GPS, que seria impossível sem a correta aplicação da física relativista).

Mistérios como a natureza da matéria e energia escuras – que constituem mais de ¾ do Cosmos, bem como interrogações sobre que tipo de incríveis objectos existem no centro de quase todas as galáxias e originam as maiores luminosidades do Universo, são alguns dos exemplos que têm levado a comunidade internacional a tentar entender profundamente as complexas equações da Relatividade Geral. Deste empreendimento global têm resultado excitantes desenvolvimentos teóricos, que avançam em paralelo com enormes esforços experimentais para obter novos e mais precisos dados observacionais. Estes são alguns dos problemas científicos mais importantes da actualidade, cuidadosamente discutidos nos últimos relatórios da NASA e da ESA.

 Enquadrada neste esforço internacional, a Ciência feita em Portugal tem conseguido destaque e liderança. Eis exemplos concretos: - Duas bolsas do European Research Council (ERCs) foram dadas a um grupo baseado em Portugal nesta área. É (provavelmente) caso único na Europa; - Duas bolsas da União Europeia para intercâmbio de investigadores entre Portugal, Espanha, Inglaterra, França, Itália, Brasil, EUA, Japão e Canadá. - De acordo com um estudo recente da Scientific American, o artigo original mais citado dos 2435 artigos colocados online em Gravitação e Cosmologia, em 2014, é uma investigação integralmente feita numa Universidade Portuguesa;

Vários estudos mostram que a Física e as Ciências do Espaço são das disciplinas científicas mais desenvolvidas em Portugal, situando-se até em patamares superiores à média europeia. Parcialmente motivada por esta crescente relevância internacional da ciência feita em Portugal nesta área, a comunidade de Relativistas portugueses formou recentemente a "Sociedade Portuguesa de Relatividade Geral e Gravitação”.

 Apesar desta inequívoca excelência segundo os padrões internacionais, para nosso grande desalento, constatámos que a FCT decidiu desapoiar a investigação em ciência fundamental teórica, em particular nesta área. Em concreto, das dezenas de candidaturas submetidas ao concurso de Projectos de IC&DT em todos os Domínios Científicos 2014 em física teórica, e cujos resultados foram divulgados durante o mês de Agosto de 2015, nenhum foi aprovado. Esta situação contrasta marcadamente com o apoio da FCT a outras áreas científicas, onde se constata, por exemplo, que uma instituição (privada) [1] na área das ciências biomédicas em Portugal teve mais de 70% dos seus projetos submetidos aprovados no mesmo concurso.

 Será que afinal a física teórica em Portugal não é excelente? Bom, o veredicto depende dos avaliadores, e claro está, do orçamento que a FCT destina a cada área. Dado que dezenas de avaliadores da área (incluindo, por exemplo, prémios Dirac e Nobel) já a carimbaram como excelente em várias avaliações (repetimos, duas ERC para física teórica, duas bolsas europeias IRSES e RISE, etc), o resultado da física teórica no concurso da FCT e em particular da área da Gravitação, pode apenas ser interpretado como sendo consequente ou de uma opção política da FCT - não assumida nem divulgada – ou de uma falta de cuidado na condução dos concursos.

Constatámos, por exemplo, que no concurso de Projetos de IC&DT em todos os Domínios Científicos 2014, o painel de avaliação na área da Física não tinha qualquer membro com background teórico, nem em gravitação/astrofísica ou cosmologia, nem em física de altas energias. Constatámos também que na área da astrofísica apenas uma instituição teve projectos aprovados. Isto não é normal. E sobretudo não é normal, nem tão-pouco ético que, coincidentalmente, um dos membros do painel de avaliação (o único vagamente relacionado com a área) tenha sido durante anos membro conselheiro dessa mesma instituição. Constatámos ainda que as próprias directivas da FCT continham explicitamente na avaliação um item designado a auferir o potencial económico da proposta. Em áreas como a física teórica ou a matemática é perverso e vai contra toda a história da ciência ter que mostrar um potencial económico. Obrigar a Ciência a guiar-se por uma perspectiva economicista é amordaçá-la. Essa visão fará sentido na tecnologia, mas não na ciência. Por trás dos avanços tecnológicos está a ciência pura e desinteressada. Foi a busca da constituição do átomo, sem fim económico aparente, que nos deu o CERN e eventualmente a internet. E foi também a lei da gravitação que permitiu que o homem fosse à Lua, o que nos deu filtros de água, implantes auditivos, bombas de insulina...

 Como noticiado pelo Público em 12 de Setembro de 2015 a propósito do concurso referido, “Nunca tanto dinheiro foi distribuído por tão poucos projetos científicos”. Pois é. Os supostos excelentes recebem tudo e os outros nada. Uma política sensata quando existe um claro diferencial de qualidade entre uns e outros, mas injusta e insensata quando esse diferencial é obviamente inexistente e a ordenação é, no mínimo, discutível. Na prática, o que se verifica é que depois da assumida pose pública da FCT enfatizando o mérito e a excelência, equipas com nítida excelência, viram recusadas as propostas de (modesto) financiamento.

 Gostaríamos de recordar a V.Exa. que os benefícios de investir em ciência fundamental, sem retorno imediato -- seja ele financeiro ou tecnológico -, são sobejamente conhecidos. Sem esse investimento a inovação deixa de existir. O relatório do comité de acompanhamento da presidência Obama no Estados Unidos chama a atenção para que (citamos livremente o relatório) "A Ciência, a Tecnologia, a Engenharia e a Matemática são fundamentais para determinar as nações líderes nos desafios em áreas como a energia, a saúde, a proteção ambiental, a segurança nacional, entre muitos outros. Um bom investimento em ciência garante que o país continue a realizar descobertas fundamentais que aprofundem o conhecimento de nós mesmos, do nosso planeta e do nosso Universo. O ensino da ciência fornece as ferramentas técnicas e a literacia necessária para um indivíduo tomar decisões informadas sobre si próprio, sobre a família e sobre a comunidade. E fortalece ainda a democracia, preparando todos para tomarem decisões informadas num mundo cada vez mais tecnológico."

Como coordenadores de dois dos maiores grupos de gravitação do país, vimos desta forma apelar à Presidente da FCT para que não deixe morrer a investigação em ciência fundamental, e em particular nesta área da gravitação, no momento em que celebramos o seu centenário. Pedimos que a FCT institua uma política científica e de excelência na elaboração do orçamento, na distribuição do orçamento, na constituição dos paineis de avaliação e no Conselho da própria FCT. É o nosso desejo que a que FCT institua, no seu seio, a política de excelência que diz exigir à comunidade que serve.

[1] a fundação pública para a ciência “doou”, neste momento de crise, uma fracção do seu orçamento para instituições privadas milionárias.

Vitor Cardoso

Instituto Superior Técnico, Coordenador do Grit, Grupo de Gravitação do Instituto Superior Técnico

Carlos Herdeiro

 Coordenador do Gr@v, Grupo de Gravitação da Universidade de Aveiro"

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