quarta-feira, 24 de abril de 2013

O Romper das Cordas


Início do livro de Lee Smolin, "O Romper das Cordas", que acaba de sair na Colecção Ciência Aberta na Gradiva. O subtítulo é "Ascensão e queda de uma teoria física e o futuro da Física":

Pode ou não existir um Deus. Ou deuses. Ainda assim, há algo de dignificante na nossa busca do divino. E também algo humanizador, que se reflecte em cada um dos caminhos que as pessoas descobriram para nos conduzir a níveis mais profundos de verdade. Alguns buscam a transcendência na meditação ou na oração; outros procuram-na auxiliando os seus semelhantes; e ainda outros, os felizardos que têm talento, procuram a transcendência na prática de uma arte.

Uma outra forma de abordar as questões mais profundas da vida é através da ciência. Não quero com isto dizer que todos os cientistas investigam as respostas a essas perguntas; a maioria não o faz. Todavia, dentro de cada área científica, existem aqueles que são movidos pelo ímpeto de saber qual é a verdade mais essencial acerca do seu objecto de estudo. Se forem matemáticos, querem saber o que são os números ou que tipo de verdade a matemática descreve. Se são biólogos, querem saber o que é a vida e como ela surgiu. Se são físicos, querem saber o que são o espaço e o tempo, bem como o que deu origem ao mundo. Estas questões fundamentais são as mais difíceis de responder e o progresso para a obtenção das respostas raramente é directo. Apenas um punhado de cientistas tem paciência para esse trabalho. É o mais arriscado, mas também o mais gratificante: quando alguém responde a uma pergunta sobre os princípios por trás de um
assunto, pode estar a alterar tudo o que sabemos.

Visto que o trabalho dos investigadores é acrescentar algo ao nosso crescente conhecimento, os cientistas passam os seus dias a enfrentar o que não entendem. E os cientistas que trabalham nos elementos basilares de um determinado domínio estão plenamente conscientes de que os blocos de construção do conhecimento nunca são tão sólidos como os seus colegas tendem a julgar.

Esta história fala de uma busca de compreensão da natureza no seu nível mais profundo. Os seus protagonistas são os cientistas que se esforçam por alargar o nosso conhecimento das leis básicas da física. O intervalo de tempo que irei abordar — aproximadamente desde 1975 — é o do meu próprio percurso profissional como físico teórico. Poderá ser também a mais estranha e frustrante época na história da física desde que Kepler e Galileu iniciaram o nosso ofício, há quatrocentos anos.

A história que escrevo poderia ser lida por alguns como uma tragédia. Falando muito francamente — e deixando-me de rodeios —, nós falhámos. Herdámos uma ciência, a física, que tinha vindo a evoluir tão rapidamente, e durante tanto tempo, que muitas vezes era tida como exemplo do modo como as outras ciências deviam ser feitas. Há mais de dois séculos, até ao momento actual, a nossa compreensão das leis da natureza cresceu rapidamente. Mas hoje, apesar dos nossos esforços, o que sabemos com absoluta certeza sobre estas leis não é mais do que já sabíamos na década de 1970.

Será comum passarem-se três décadas sem que tenha havido qualquer progresso revolucionário na física fundamental?

Mesmo se recuarmos mais de duzentos anos, época em que a ciência era uma preocupação quase exclusivamente de amadores ricos, este fenómeno é inédito. Aproximadamente desde o final do século XVIII, foram alcançados progressos significativos em questões cruciais a cada quartel de século.

No ano de 1780, quando as experiências químicas de carácter quantitativo de Antoine Lavoisier mostraram que há conservação da matéria, já as leis do movimento e da gravidade de Isaac Newton estavam em vigor há quase cem anos. Mas, enquanto Newton nos deu um enquadramento para compreender a natureza como um todo, as fronteiras do conhecimento estavam bem abertas. As pessoas estavam apenas a começar a aprender as noções básicas de matéria, luz e calor, e alguns fenómenos misteriosos como a electricidade e o magnetismo estavam a ser esclarecidos.

Ao longo dos vinte e cinco anos que se seguiram foram feitas grandes descobertas em todas estas áreas. Começou-se a compreender que a luz é uma onda. Descobriu-se a lei que regula a força entre partículas electricamente carregadas. Conseguiram-se enormes avanços na compreensão da estrutura da matéria com a teoria atómica proposta por John Dalton. Foi introduzido o conceito de energia, os fenómenos de interferência e difracção foram explicados a partir da teoria ondulatória da radiação, a resistência eléctrica e a relação entre a electricidade e o magnetismo foram exploradas e estabelecidas.

Vários conceitos fundamentais subjacentes à física moderna surgiram no quarto de século seguinte, entre 1830 e 1855. Michael Faraday introduziu o conceito das forças que são transmitidas através de campos, uma ideia que utilizou para incrementar consideravelmente o nosso entendimento da electricidade e do magnetismo.

Durante o mesmo intervalo de tempo, a conservação da energia foi proposta, bem como a segunda lei da termodinâmica. No terceiro quartel do século XIX, as noções pioneiras de Faraday sobre campos foram desenvolvidas por James Clerk Maxwell na teoria moderna do electromagnetismo. Maxwell não só unificou a electricidade e o magnetismo, mas também caracterizou a radiação como uma onda electromagnética. Em 1867 explicou o comportamento dos gases com base na teoria atómica. Na mesma época, Rudolf Clausius introduziu o conceito de entropia.

O tempo compreendido entre 1880 e 1905 foi o da descoberta dos electrões e dos raios X. O estudo da radiação térmica foi desenvolvido em várias etapas, conduzindo à descoberta de Max Planck, em 1900, da fórmula correcta das propriedades térmicas da radiação — uma fórmula que desencadearia a revolução quântica.

Em 1905 Albert Einstein tinha 26 anos. Não conseguira encontrar um emprego académico, apesar de os seus trabalhos iniciais sobre a física da radiação térmica terem vindo mais tarde a ser considerados grandes contributos para a ciência. Mas isso foi apenas uma amostra. Einstein cedo se concentrou nas questões fundamentais da física: primeiro, como poderia o movimento relativo ser conciliado com as leis de Maxwell da electricidade e do magnetismo? Respondeu a essa pergunta com a sua teoria da relatividade restrita. Dever-se-ão considerar os elementos químicos como átomos newtonianos? Einstein provou que sim. Como se pode conciliar a teoria da radiação com a existência de átomos? Einstein explicou como e ao longo do processo mostrou que a radiação pode comportar-se como onda ou como partícula. Todas estas respostas foram dadas no ano de 1905, nos tempos livres do seu emprego como examinador de patentes. A estruturação das ideias de Einstein inspirou o quarto de século seguinte. No ano de 1930, a teoria da relatividade geral já era conhecida, era uma teoria revolucionária que postulava que a geometria do espaço não é constante, mas evolui acoplada ao tempo. A dualidade onda-partícula proposta por Einstein em 1905 já se tinha tornado parte da teoria quântica, que fornecia uma compreensão pormenorizada dos átomos, da química, da matéria e da radiação. No mesmo ano de 1930, já era do conhecimento científico que no universo há um enorme número de galáxias como a nossa, sabendo-se ainda que estas se afastavam entre si. As implicações destas observações não eram claras na época, mas já se sabia que vivemos num universo em expansão.

Com o estabelecimento da teoria quântica e da teoria da relatividade geral como parte da nossa compreensão do mundo, a primeira fase da revolução da física do século XX tinha terminado. Muito físicos, pouco à vontade com as reviravoltas nas suas áreas de especialidade, ficaram aliviados por se poder voltar a fazer ciência da forma usual, sem que houvesse a necessidade de questionar constantemente os pressupostos científicos basilares. Mas o seu alívio era prematuro.

Einstein morreu no início do terceiro quartel do século XX, em 1955. Nessa época já se sabia como combinar de uma forma coerente a teoria quântica com a teoria da relatividade restrita; foi esse o feito da geração de Freeman Dyson e Richard Feynman. Já se havia descoberto o neutrão, o neutrino e centenas de outras partículas aparentemente elementares. Também se compreendeu que a imensidão de fenómenos naturais é estabelecida unicamente por quatro forças: electromagnetismo, gravidade, força nuclear forte (que mantém os núcleos atómicos coesos) e força nuclear fraca (responsável pelo decaimento radioactivo). Mais um quarto de século volvido e somos conduzidos ao ano de 1980. Nesta época já se tinha estabelecido uma teoria que explicava os resultados de todas as experiências realizadas até à data com partículas elementares e forças — uma teoria designada modelo-padrão da física de partículas. O modelo-padrão explicava de uma forma precisa, por exemplo, como os protões e os neutrões são formados de quarks, sendo estes unidos por gluões, os transportadores da força nuclear forte. Pela primeira vez na história da física fundamental, a teoria acompanhara a experimentação. Ninguém desde então realizou uma só experiência que não fosse coerente com este modelo ou com a teoria da relatividade geral.

Do muito pequeno ao muito grande, o nosso conhecimento de física estende-se agora à nova ciência, a cosmologia, em que a teoria do Big Bang se tornou a visão mais consensual. Percebemos que o nosso universo contém não só estrelas e galáxias, mas também objectos exóticos como estrelas de neutrões, quasares, supernovas e buracos negros. No ano de 1980, Stephen Hawking já havia feito a fantástica previsão de que os buracos negros emitiam radiação. Além disso, os astrónomos tinham indicações de que o universo possui imensa matéria negra — isto é, matéria que não emite nem reflecte radiação electromagnética.

Em 1981, o cosmólogo Alan Guth propôs uma perspectiva dos momentos iniciais do nosso universo designada por inflação. Expondo-a de modo aproximado, a sua teoria afirma que o universo, extraordinariamente cedo, passou por um curto intervalo de expansão colossal, factor que explica porque parece o universo idêntico em qualquer direcção de observação. A teoria da inflação originou previsões que aparentavam ser duvidosas até, na última década, terem surgido indícios que a sustentavam. Apesar de à data de produção deste livro alguns enigmas ainda persistirem, a esmagadora maioria dos indícios abona a teoria da inflação. Assim, em 1981, a física desfrutara de duzentos anos de crescimento explosivo. Cada nova descoberta aprofundou a nossa compreensão da natureza porque, em todos os casos, a teoria e a experiência andaram de mãos dadas. Foram testadas e confirmadas novas ideias; as novas descobertas experimentais foram explicadas com base nas teorias estabelecidas. Com o passar do tempo, no início de 1980, as coisas ficaram praticamente paralisadas.

(...)
Lee Smolin

2 comentários:

Unknown disse...

A ciencia versus religiao na verdade nao existe ou melhor devia já estar em universos distintos. Com a virtualização crescente de grande parte da ocupaçaõ diaria de largas camadas das populações mais nos paises do primeiro mundo, talvez fosse um modo de libertar as sociedades do nefasto que "leis e regras" pensadas a milhares de anos provocam ao ser aplicadas em contextos actuais. Aceitavamos os universos paralelos e cada assunto ficava restrito ao seu universo ou cada um vivia virtualmente no seu sem magnetizar os seres do outro.

perhaps disse...

O termo tragédia aplicado à física actual parece-me excessivo, mas apreciei a afirmação "nós falhámos". Parece-me um bom princípio para poder continuar.

Este texto fez-me sorrir. Por ser uma síntese das descobertas da física e ser eu péssima aluna.Já não lia em voz alta há uns anitos :)

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