sábado, 31 de dezembro de 2011

Química das coisas boas: da farinha de trigo, ovos e açúcar aos pastéis de Tentúgal


Uma versão inicial deste texto foi escrita para a Noite da Química no Laboratório Chimico, mas acabou por ficar inédita. Procurava-se, de forma simples, mas tão completa quanto possível, dar uma ideia da química envolvida neste doce maravilhoso

A farinha é um pó desidratado rico em amido, contendo também proteínas, obtido por moagem de cereais. O que torna a farinha de trigo única é o glúten, uma proteína amorfa muito elástica devido às suas ligações de enxofre e de hidrogénio. Esta proteína encontra-se na farinha em partículas de uma grande variedade de diâmetros em torno de um décimo de milímetro. O processo tradicional de peneirar a farinha serve para separar as partículas mais pequenas, obtendo-se assim farinhas adequadas para massas finas, ou seja com espessuras muito pequenas.

O glúten é insolúvel em água. Por isso, a farinha é inicialmente misturada com gorduras que, para além de melhorarem o sabor, formam uma dispersão, à qual se junta posteriormente a água que ajuda a ligar todo o conjunto. A adição de fermentos biológicos, ou orgânicos e inorgânicos, faz com que se forme dióxido de carbono no interior da massa, o que origina um aumento de volume do sistema, devido à elasticidade do glúten, sem que haja qualquer vantagem nutritiva. Posteriormente, no processo de aquecimento no forno todo o sistema fica mais rígido por perda de água e formação de uma estrutura reticulada, ficando os orifícios do interior da massa. São assim obtidos os pães vulgares e bolos comuns, mas não as massas finas dos pastéis de Tentúgal.

Para obter massas finas não se usam fermentos. No processo de as estender há quebra e formação de novas ligações de enxofre e de hidrogénio do glúten. E se for utilizada compressão, estas ligações aumentam de número originando uma maior rigidez da massa, a qual depois de levada ao forno se torna deliciosamente estaladiça. Para os pastéis de Tentúgal obtêm-se espessuras da ordem de metade do décimo de milímetro!

A sacarose, vulgarmente conhecida como açúcar, é um hidrato de carbono e simultaneamente um dos produtos mais puros, no sentido químico, que podemos encontrar no dia-a-dia. Trata-se de um sólido de cor branca que é muito solúvel em água. Essa solubilidade aumenta com a temperatura, assim como o ponto de fusão da solução resultante, podendo obter-se os bem conhecidos pontos do açúcar que correspondem a zonas de temperaturas características. A temperaturas relativamente elevadas a sacarose começa a decompor-se e a polimerizar ficando com a característica cor do caramelo, um material mais rico em carbono que em água.

A gema faz parte de uma célula gigante que é o ovo e tem no seu interior proteínas e lípidos, para além de uma grande quantidade de água. As propriedades químicas dos compostos que contém fazem dela um bom ligante para tintas no processo ancestral da têmpera e para a actual formação da emulsão conhecida como maionese. É também um material único e fundamental na doçaria portuguesa.

Para preparar o creme de ovo, ou ovos moles, usa-se uma calda quente de açúcar que vai coagular as proteínas das gemas de ovo e formar uma mistura muito agradável ao paladar e ao tacto bucal. A massa fina estaladiça do exterior dá forma ao conjunto de forma única.

Os pastéis de Tentúgal têm química e isso é muito bom!


Para saber mais: no blogue Uma Química Irresistível têm sido publicados textos detalhados sobre a química de alguns dos ingredientes alimentares referidos no texto e sobre vários aspectos da química na cozinha.

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