segunda-feira, 18 de março de 2024

MORREU O NUNO

Homenagem possível a um poeta acabado de partir.
Morreu o Nuno Júdice, coitado,
prematuramente, o que é injusto.
Com aquele seu ar desactivado,
de tímido e esquivo mangusto,

não era pessoa de grandes falas,
antes se recolhia ao silêncio,
deixando, sem muito custo, as galas
e brilhos, a quem fosse mais propêncio.

Os versos que deixa terão destino,
quase de certeza, muito incerto,
como acontece, no desatino,

de um futuro sempre encoberto.
Sublinhe-se a passagem de um poeta,
que foi, aqui, efémero cometa.
                                                                    Eugénio Lisboa

SOBRE A NECESSIDADE DA UTOPIA

Serve este texto para deixar um apontamento sobre a ideia de utopia, mas também para notar a grande possibilidade de se replicar ad infinitum um erro de autoria.

 

O entrevistador pergunta ao jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano "Ainda existe espaço para a utopia no mundo de hoje?"

"Sim", responde Galeano, "no sentido que lhe deu Fernando Birri, que injustamente se atribui a mim. Num dos meus livros citei essa frase dizendo que era dele (...). 
 
Estávamos em Cartagena das Índias, a belíssima cidade colombiana, e fizémos uma palestra juntos na universidade, um pouco ao estilo dos sobrinhos do Pato Donald, cada uma começa a frase e o outro terminava-a. 
No final um dos estudantes levantou-se e perguntou-lhe a ele, não a mim: «Para que serve a utopia?». Ele respondeu da melhor maneira, eu nunca ouvi uma resposta melhor: disse que fazia essa pergunta todos os dias: para que serve a utopia? Se é que a utopia serve para alguma coisa... 
Ele disse: «vejam bem a utopia está no horizonte e, se está no horizonte, eu nunca vou alcançá-la porque se caminho dez passos, a utopia vai distanciar-se dez passos, e se caminho vinte passos, a utopia vai colocar-se vinte passos mais além, ou seja, eu sei que jamais a alcançarei. Para que serve? Para isso: para caminhar»".

sexta-feira, 15 de março de 2024

Como Bola Colorida. A Terra, Património da Humanidade

Prefácio de Carlos Fiolhais ao livro de Galopim de Carvalho identificado em título.
 
"Merecia, há muito, uma reedição este livro, Como Bola Colorida. A Terra, Património da Humanidade, da autoria do Professor Galopim de Carvalho, publicado pela primeira vez na Âncora Editora em 2007. De facto, a expressão “há muito” não será a mais apropriada do ponto de vista de um geólogo, já que este lida com intervalos temporais de milhões de anos. Do ponto de vista da história da Terra, a edição e a reedição deste livro sobre as Ciências da Terra são praticamente simultâneas. Seja como for, a necessidade de reeditar esta obra diz bem do interesse que ela merecidamente continua a suscitar no público.

A expressão Coma Bola Colorida, uma citação de um famoso verso do poema “Pedra Filosofal” de António Gedeão, pseudónimo literário de Rómulo de Carvalho, o professor de Ciências Físico-Químicas que é o patrono da cultura científica em Portugal, refere-se ao nosso planeta, que tem belas cores: decerto o azul do mar e o verde da vida, mas também as cores das rochas, que podem ir dos tons claros do quartzo aos escuros do basalto, passando pelos cinzentos e rosa dos granitos e pelos tons vermelhos da algumas argilas (pois as há multicolores!). 
 
Mas uma criança que quisesse agarrar no nosso planeta teria de ter um tamanho gigantesco. Basta pensar que a bola onde vivemos tem cerca de 6400 quilómetros de raio, ao passo que uma bola de futebol adequada a uma criança terá cerca de 20 centímetros de raio. Um rapaz ou uma rapariga poderão ter entre um metro e um metro e meio. Feitas as devidas proporções, a altura da criança teria de ser à volta de 40 mil quilómetros, o que, parecendo muito, não é nada à escala do Sistema Solar: é um décimo da distância entre a Terra e a Lua.

Uma metáfora impressionar-nos-á tanto mais quanto mais fora da realidade estiver. E é indiscutivelmente uma bela metáfora aquela que Galopim de Carvalho escolheu, em 2006, para título do seu livro, publicado quando se comemoravam os cem anos do nascimento de Rómulo de Carvalho. A nossa “bola colorida” já deu 17 voltas ao Sol deste então. Estamos todos mais velhos. Mas na Terra não se nota muito. Só não está na mesma devido às modificações que lhe fizemos, das quais a mais grave será o aumento desmesurado dos gases de efeito de estufa, como o dióxido de carbono, na atmosfera. Mas, para quem tem 4,54 mil milhões de anos de idade, como é o caso do nosso astro, 17 anos não são nada, absolutamente nada. 
 
O livro mantém-se novo, tendo a revisão sido menor: naquilo que está bem não se deve mexer. Em particular, o prefácio de José Mariano Gago tem plena actualidade, pelo que se mantém rigorosamente na íntegra. Ao relê-lo, senti saudades do seu autor: faz-nos falta aqui neste nosso quinhão do planeta para avivar a luz da ciência. Foi ele que instituiu, em 1996, o Dia Nacional da Cultura Científica, precisamente no dia de aniversário de Rómulo de Carvalho, para prestar justa homenagem aquele que, além de professor e poeta, foi também um grande divulgador de ciência.
 
O geólogo Galopim de Carvalho, a quem um dia chamei “Mestre das Pedras e das Palavras” por ser tão exímio com as primeiras como com as segundas, é, na esteira de Rómulo, um grande divulgador de ciência. Com uma vivacidade que tem resistido ao passar dos anos (para ele os anos que sejam abaixo de um milhão não são relevantes!), tem-nos dado o melhor do seu saber e talento quando nos descreve a incrível variedade da Terra e nos conta o longuíssimo processo histórico que moldou o nosso lugar no espaço. Neste livro, que acresce a mais de três dezenas de outros seus títulos, Galopim traz-nos, num português de lei, uma síntese dos resultados mais importantes das Ciências da Terra: a estrutura, a dinâmica, a pluralidade de paisagens do nosso planeta, incluindo as pródigas marcas da vida que é quase tão antiga como ele. Galopim de Carvalho usa um recurso que Rómulo de Carvalho (por coincidência, partilham o mesmo apelido!) também usava desenvoltamente e que devia ser mais comum na divulgação da ciência entre nós: recorre à história da ciência. Mostra assim que a ciência é uma conquista humana, um conjunto de conhecimentos que foram duramente extraídos da Natureza pelos cérebros e mãos de diligentes seres humanos ao longo do tempo, uns na peugada dos outros, num empreendimento contínuo e a continuar. Mais importante que os conhecimentos, são os métodos para os obter. 
 
Sim, é contada em traços gerais a história da Terra, mas é também contada a história da tomada de consciência da historicidade geológica, que é muito recente. Com efeito, foi só no século XIX que os geólogos se aperceberam da enormidade da nossa história planetária, ultrapassando antigos preconceitos, alguns de raiz bíblica. Os geólogos que olharam para as modificações lentas e graduais da Terra foram-lhe dando uma idade aproximada que nada tinha a ver com as mitologias e que excedia mesmo largamente a que era estimada por físicos e químicos com base em considerações termodinâmicas. E era mais fiel a sua cronologia, justificada pela acumulação de observações de lagos e oceanos, vales e montanhas, estratos e fósseis, etc. do que a dos seus colegas físico-químicos, fundada em modelos matemáticos.

A Terra tem sido palco de um rol de acontecimentos, não raro surpreendentes: arrefecimento a partir de uma massa ígnea inicial, impacto com outro astro para originar a Lua, quedas de meteoroides, formação dos oceanos, surgimento dos primeiros organismos, início da fotossíntese e oxigenação da atmosfera, proliferação da vida com a «invenção» do sexo, extinções maciças por razões em parte misteriosas, movimentos de placas tectónicas e outros, sismos e vulcões, idades do gelo, e, nos nossos tempos, as transformações de responsabilidade humana que alguns julgam merecer um novo período geológico: o Antropoceno. Se hoje sabemos algumas coisas sobre estes fenómenos foi graças aos esforços de homens e mulheres cujos nomes vêm referidos neste livro. 
 
Mestre Galopim é o nosso guia nessa viagem nas páginas que se seguem, destacando naturalmente os sítios e eventos em Portugal, onde está ou de onde vem a maioria dos seus leitores. Ele preocupa-se com a fácil compreensão por parte de quem lê, nunca subestimando a inteligência dos leitores, uma regra básica na divulgação científica. Por exemplo, tem o cuidado de nos explicar, recorrendo a grãos de arroz e a badaladas de sinos, o que significa um milhão de anos, que afinal é uma «migalha» na história da Terra. Para nos acicatar a imaginação, fala de um bolo de aniversário para a Terra com 4540 milhões de velas. São, indiscutivelmente, muitas velas! Quando os dinossauros desapareceram, o bolo «só» tinha 4474 milhões de velas.

Se com José Mariano Gago a ciência entrou nas nossas casas, é preciso que ela entre mais e que fique bem instalada. Galopim de Carvalho é um exemplo inspirador de como é possível, com vista a tal desiderato, fazer bem-sucedida divulgação de ciência, num país em que largos sectores são avessos à ciência. São mutilíssimos livros como este que descrevem em linguagem simples o chão que pisamos, o seu início e as suas metamorfoses, as suas riquezas e misérias, os seus encantos e mistérios. 
 
Em meu nome e – seja-me permitido – em nome de todos os leitores expresso-lhe a minha, a nossa, gratidão, por tudo o que temos aprendido dele e com ele. Sei que a vida humana é um lampejo em comparação com o tempo da Terra, mas desejo que, no seu caso, esse lampejo se prolongue, prosseguindo a iluminação que tem espalhado. 
 
Desejo que o «Mestre das Pedras e das Palavras» continue a ajudar-nos a compreender o nosso planeta não só com a sua grande sabedoria, mas também com a sua enorme jovialidade e a sua extraordinária simpatia.

Coimbra, 15 de Dezembro de 2023

terça-feira, 12 de março de 2024

CONSIDERAÇÕES SOBRE O RESULTADO DAS ELEIÇÕES

Por Eugénio Lisboa 
 
O resultado destas eleições evidencia, sobretudo, uma dramática subida do CHEGA e, pior ainda, uma tendência a continuar a subir. A tão universalmente gabada queda da abstenção, infelizmente, quer dizer que os habituais abstencionistas que, desta vez, levantaram o rabinho do sofá, para irem votar, foi para irem votar no CHEGA. Havia, é claro desilusão e ressentimento, devido ao estado do país, mas isso, só por si, não explica tudo. A maioria das pessoas gosta de milagres e, milagres, foi o que Ventura, despudoradamente, lhes prometeu. As pessoas mais qualificadas da nossa sociedade, Professores universitários, juízes, médicos, altas patente do exército, por maior cultura profissional e geral que possuam, gostam de acreditar em milagres que, de repente, os tornem ricos e famosos. 
 
Viu-se isso, de forma calamitosa, com a “banqueira do povo”, D. Branca. Quando eu soube do que se estava a passar, fiz logo o diagnóstico, porque me lembrava de casos acontecidos, na minha vida empresarial, em que alguns gerentes de instalações da minha empresa foram despedidos por fazerem o que se chama “rolling the cash”. Era o que fazia a D. Branca e o que fez o americano Madoff. Mas os mais altamente qualificados cidadãos deste país precipitaram-se a depositar as suas poupanças nas mãos daquela “miracle worker” (fazedora de milagres). Muitos ficaram sem nada, quando a suspeita levou a uma corrida geral aos levantamentos. Fui altamente repreendido, ao não aderir àquela loucura, por pessoas que alegavam que senhores Professores universitários não tinham hesitado em pôr o seu dinheiro nas mãos da banqueira. Respondi-lhes sucintamente que, universitários ou não, esses senhores não sabiam fazer contas. André Ventura é a D. Branca da política portuguesa: oferece milagres a quem gosta de milagres e quem gosta de milagres é muita gente. O problema é que esses milagres não estão disponíveis.
 
Por outro lado, esta iliteracia política de muitos cidadãos deriva do baixíssimo grau de cultura e de educação cívica, com que hoje se sai das escolas e universidades. É assustador ver o que se passa nas redes sociais, que indicia um nível de boçalidade intelectual, que não é de bom augúrio para um futuro saudável do país.

Que, ao fim de oito anos de desgaste governamental do PS, com tudo quanto de negativo aconteceu, o PSD só tenha conseguido um número de deputados igual ao do PS, mostra a fragilidade do futuro governo e a relativa pouca fé dos eleitores no partido de Montenegro. Isto convocaria, a meu ver, um atitude de adultos da parte tanto do PSD como do PS: esquecerem-se de lutas partidárias e entenderem-se naquelas áreas essenciais ao bem estar do país. Se o não fizerem o descrédito nesta democracia aumentará e o ovo da serpente dará mais filhos.

Eis, em resumo muito resumido, o que penso da situação em que estamos.

Eugénio Lisboa

À ATENÇÃO DOS PROFESSORES DE GEOLOGIA E DEMAIS INTERESSADOS

Por A. Galopim de Carvalho
 
Limitando-me, por agora, aos textos de divulgação científica na área em que fui profissional, seja num livro, num artigo de jornal ou de revista, num blogue ou nesta minha página do Facebook, focando bases essenciais da geologia, com incidência mais aprofundada nos domínios em que trabalhei, o meu propósito, por diversas vezes declarado, como professor que fui e não deixei de ser, é escrever uma lição, em bom português, numa linguagem acessível ao cidadão comum, sem perda de rigor científico, com humildade e, sempre que possível, agradável de ler. Tudo isto envolvido num quadro onde, dizem-me os que me leem, transparece um sentimento de afectividade.

É esta comunicação, quase diária, aqui iniciada há uns oito anos com os meus leitores, hoje em número que ultrapassa os 35 000, que me encorajam a cumprir como "voluntário à distância", este que encaro como um dever de cidadania.

Em cumprimento do que penso ser um dever cívico de todo aquele que teve o privilégio de estudar a nível superior, pretendo, sobretudo, por esta via, aproximar-me dos professores e professoras que ensinam geologia nas nossas escolas, proporcionando-lhes informação científica actualizada, em estreita ligação a uma componente cultural indispensável a quem tem a nobre missão de ministrar conhecimentos e, ao mesmo tempo, formar cidadãos.

Igualmente em cumprimento do atrás citado dever cívico, procuro, também chegar ao público, em geral (divulgar é espalhar conhecimento entre o vulgo), qualquer que seja a sua posição no tecido sociocultural, facultando-lhe conhecimentos que não tiveram oportunidade de adquirir, aprofundar os que possuem e relembrar os que o tempo apagou ou distorceu.

Com a ressalva de raras excepções, o défice de cultura geológica (e não só) caracteriza a sociedade portuguesa a todos os níveis, dos governantes aos mais humildes cidadãos, dos industriais e comerciantes aos militares e funcionários públicos, dos artistas de todas as artes aos jornalistas, agentes de cultura, “opinion makers” e outros intelectuais, dos juristas e economistas aos jogadores de futebol.

Escrever neste domínio tem sido, pois, uma acção complementar das muitas palestras, lições ou, melhor dizendo, conversas que sempre fiz e que hoje ainda vou fazendo, mais espaçadamente, nas nossas escolas, dos jardins de infância às universidades, em Museus, Centros de Ciência, Bibliotecas Municipais e outras instituições, por todo o País. Acrescente-se que, por frutuosa experiência, em tempo de pandemia, estas conversas continuam, agora, a partir de casa, frente ao computador, utilizando a chamada via zoom.

Numa linguagem figurada, diria que, ao tornar público o que escrevo, seja divulgação, crónica, ficção, ensaio ou opinião, estou a abrir, a todos, a “biblioteca” onde guardo, praticamente intacto e bem catalogado o que estudei e tudo o que a experiência e a vida me ensinaram. Neste tudo, gosto de lembrar os meus difíceis tempos de escola e as minhas sempre interessadamente vividas experiências como aprendiz de muitas artes, numa sociedade ainda muito pouco industrializada e marcadamente artesanal, que foi a da minha infância e primeira adolescência na cidade de Évora. Neste tudo cabem, ainda, já mais crescidinho, as minhas incursões no mundo rural alentejano, sempre curioso na observação e, muitas vezes, experimentação nas múltiplas fainas e onde, no convívio como os camponeses fui, pela primeira vez, confrontado com o drama das desigualdades sociais.

Na imagem, a discordância angular da Praia do Telheiro, Vila do Bispo.
Entre os que podem ler estão também os meus pares, que sabem tanto, mais ou muito mais do que eu. Sei que, ao divulgar o que escrevo, corro o risco de errar num ponto ou noutro, numa ou noutra noção e induzir em erro o leitor menos preparado. Só não erram os que não falam, não escrevem nem fazem. É por isso que sempre aceitei e aceito a crítica e o apontar de eventuais erros ou falhas, situações que já tiveram lugar e que, sempre e oportunamente, corrigi e agradeci.
 
A. Galopim de Carvalho

segunda-feira, 11 de março de 2024

A EDUCAÇÃO, BEM COMUM, DIREITO INDIVIDUAL OU SERVIÇO PÚBLICO?

As orientações/recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), principal agente na determinação de políticas educativas globais e nacionais, têm sido acolhidas por uma diversidade de países.
 
A principal orientação/recomendação desta organização transnacional, para o sector da educação, é que os alunos alcancem o "bem-estar". Um "bem-estar" académico, profissional e pessoal, que sendo, em primeira instância, individual, se replicado em cada um, assegurará o bem-estar social. No modelo de aprendizagem que veicula (ver imagem ao lado), a representação da ideia é clara.
 
Mas, esta noção está distante do que se entende por "bem comum", finalidade legítima da educação escolar numa linha de pensamento humanista.
 
A reflexão do filósofo Michael Sandel (ver aqui e aqui) sobre o assunto tem sido acompanhada por várias outras. Uma, das mais recentes que conheço e que destaco pela profundidade que denota, é a que se reúne num livro com o título La educación, ¿bien común, derecho individual o servicio público? 
 
Coordenam-na dois jovens professores de Educação/Pedagogia da Universidade Autónoma de Madrid, com trabalho na formação de professores. Os seus nomes são: Bianca Thoilliez Ruano e Jesús Manso Ayus. Os autores, de diversa formação, encontram-se e dialogam nessa área.

O livro é assim apresentado: 

Abordam-se os fundamentos teóricos do debate contemporâneo sobre a educação como "bem público" e "bem comum". Para tanto analisam-se estes dois conceitos e a sua relação com a condição da educação como “direito” e “serviço” num contexto de privatização e mercantilismo crescentes. Reivindica-se a educação como um "bem público e comum", afirmando-se as escolas como as instituições que mais capacidades têm para assegurar direitos e oportunidades para todos.

Deixo, ainda, nota do índice que, por certo, despertará o interesse de alguns leitores:

Presentación. Bianca Thoilliez Ruano, Jesús Manso Ayuso.
1. Lo común como fundamento de una noción de bien compartida: implicaciones educativas. Miriam Prieto Egido, Alberto Sánchez Rojo.
2. Enfoque pedagógico de lo político vs. enfoque político de lo pedagógico Fernando Gil Cantero
3. Bien común y radicalidad educativa. El disenso y la pluralidad educativa como formas de articular la educación pública. David Reyero.
4. El entramado ético-político del proyecto de la educación pública desde las aportaciones de Taylor. Tania Alonso Sainz
5. La educación ensimismada. Por qué una pedagogía orientada a la felicidad y la diversidad privatiza los bienes escolares. Bianca Thoilliez Ruano.
6. La escuela libre no directiva: ni pública ni comunitaria. Ana Irene Pérez Rueda
7. La educación escolar como razón de mercado. Mapeando las racionalidades de gobierno de la escuela pública. Mariano Narodowski, Maria Delfina Campetella.
8. La Nueva Gestión de lo Público en las políticas educativas españolas: desafíos en las definiciones de lo público y lo privado. Marta Moreno Hidalgo, Jesús Manso Ayuso
Epílogo: La escuela, un bien público y común, Esther Díaz Romanillos

 Maria Helena Damião

"Novo Liber Amicorum Mário Frota"

Novo Liber Amicorum Mário Frota - Sempre a Causa dos Direitos dos Consumidores, da autoria de Susana Oliveira e Rui Ataíde, com edição da Almedina, saído em 2023, é como o próprio nome revela, uma homenagem, uma nova homenagem, ao precioso trabalho do Professor Mário Frota no Direito do Consumo.

Consta na nota prévia o seguinte:

"Volvida uma década sobre o primeiro Liber Amicorum Mário Frota, chegou o momento de os amigos, colegas, pupilos, admiradores, colaboradores e seguidores prestarem nova homenagem ao eterno menino de Namibe que ao longo de mais de oito décadas de vida se tornou num dos maiores vultos do Direito do Consumo intra e extra muros. Apresentamos, pois, o Novo Liber Amicorum Mário Frota, porque, como sói dizer, citando Sócrates (leia-se), o filósofo: “Existe apenas um bem, o saber, e apenas um mal, a ignorância”.


domingo, 10 de março de 2024

MENSAGEM AOS NOSSOS LEITORES

Estimados Leitores do De Rerum Natura.

Recordamos uma passagem do Manifesto deste blogue (que poderão ler na margem direita do ecrã):

O blog, que partilha o título com o poema de Lucrécio, fala de várias coisas do mundo, procurando expor a sua natureza. Parte da realidade do mundo (...) para discutir o empreendimento humano da descoberta do mundo (...) e as profundas implicações que essa descoberta tem para a nossa vida no mundo

E também o pedido que fazemos quanto aos comentários:

1) Identifique-se com o seu verdadeiro nome.
2) Seja respeitoso e cordial, ainda que crítico. Argumente e pense com profundidade e seriedade e não como quem "manda bocas".
3) São bem-vindas objecções, correcções factuais, contra-exemplos e discordâncias.

Quando diversas pessoas pensam sobre as coisas do mundo encontram, muitas vezes, divergências, erros, falhas, equívocos, contradições, enfim... falta de acordo. Isso é fundamental para o evoluir do pensamento, daí que os blogues, por agilizarem a discussão sobre as coisas do mundo, tenham ganhado a importância que se lhes reconhece.

De nada adianta, neste propósito, a divulgação de textos ou comentários anónimos, que não passam de "bocas" capazes de tocar a ofensa pessoal. Nada justifica, num espaço público, a ofensa pessoal.

Assim, pedimos aos Leitores a melhor atenção para esta linha editorial, a qual, devemos dizer, tem sido, por regra, respeitada nos muitos anos que já tem o De Rerum Natura. As excepções (é de excepções que se trata) não podem, pelas razões que explicámos, ser acolhidas.

Muito obrigada
A equipa do De Rerum Natura

FOME DE SAÚDE

Cesáreo era um homem doente
e a doença isola uma pessoa.
Sentia-se anormal e impotente
e o cheiro da doença destoa!

Sonhava com saúde e cheiro bom,
que lhe dessem força e energia.
Queria a vida certa, como um dom,
que lhe trouxesse de novo a alegria!

Por isso, um dia, num verso imortal,
querendo a saúde, para madrinha,
disse que, aromática e normal,

era a mulher que mais lhe convinha.
Não a quis formosa ou sensual,
mas, tão só, aromática e normal.

Eugénio Lisboa
NOTA: Este poema é, se quiserem, uma modesta contribuição, para a busca do sentido profundo daqueles dois adjectivos (aromática e normal) que constituíam, para Cesáreo, a sedução máxima que uma mulher podia, para ele, ter, na situação em que se encontrava.

Nem todos os meios são legítimos, mesmo quando as intenções são as melhores

A visita que hoje fiz ao blogue Escola Portuguesa, deixou-me perceber a “existência” de uma tal “maria esperança portugal”, candidata virtual e fictícia (não real) da Federação Nacional da Educação às eleições que se aproximam. Recuperei, a partir desta fonte, informação sobre tal candidatura, anunciada em Dezembro passado (ver aqui, aqui, aqui e aqui) e vi o vídeo que a apresentava e do qual transcrevo o seguinte:

Imagem recortada daqui
"Como novidade e iniciativa arrojada e criativa, resolvemos até às eleições legislativas ter alguém que dê visibilidade às nossas propostas, àquilo que é uma acção em favor da educação. Esse alguém tem um nome, chama-se “maria esperança portugal”. É uma candidata virtual e fictícia que apresenta uma candidatura também ela virtual e fictícia. É alguém criado através dos meios de inteligência artificial.
É “maria” porque é um nome tipicamente português; é uma mulher, porque 80% dos trabalhadores do sector da educação são mulheres, é “maria” também porque é um nome terminado em “ia”, portanto, inteligência artificial; e é alguém que pretendemos que nos traga esperança, e, por isso mesmo, tem como apelido “esperança portugal” (...). Acreditamos que ao longo dos próximos dias vai ser muito útil, vai contribuir muito, através das suas propostas e acções para que a educação possa ser trazida para o debate (…).
A “maria esperança portugal”, à semelhança de qualquer candidato tem um site, materiais de campanha, cartazes, [etc.] espalhados pelo país, vai ter pendões e faixas colocados estrategicamente nas escolas porque é esse o seu espaço de intervenção, irá também realizar através dos diversos sindicatos da FNE reuniões com os trabalhadores que esses sindicatos representam (...). Queremos deixar bem claro que a “maria esperança portugal” não é nenhuma brincadeira, é sim um compromisso com a educação"

Aqui, o apresentador da candidatura dá a palavra à “candidata”, que não vai além de um limitado e muito comum conjunto de vacuidades associadas à educação, das quais o apresentador faz eco. Com um meio tecnológico tão avançado, esperar-se-ia ouvir algo diferente, algo nunca ouvido. Ainda assim, o Secretário-Geral da Internacional da Educação, disse, numa gravação em vídeo: 

"(...) estou entusiasmado por apoiar “maria esperança portugal” para “aumentar a consciencialização” acerca dos problemas relativos à educação em Portugal, as aspirações e exigências dos educadores, praticamente ausentes da campanha eleitoral. Ressalta a forma criativa como tal é apresentado."

E não passou deste assinalar de problemas. Numa última tentativa para encontrar alguma "inovação" no modo de os apresentar e discutir, abro este link, que é uma "entrevista" à dita "candidata" feita por uma entidade tão virtual e fictícia como ela. Nada de novo: tudo já dito e repetido centenas, milhares de vezes, em praticamente todas as circunstâncias, por praticamente toda a gente. Declarações em catadupa e atadas, umas à outras, com um nó cego, que me deixam sempre numa posição desconcertante: sim... pois... claro... ainda que... Declarações que não estão certas nem erradas, com as quais não é possível concordar nem discordar...

Deixei para o final a minha interpretação, nada favorável, acerca desta "forma criativa" de chamar a atenção para a "importância da educação":

- substituir-se um professor real, um professor-pessoa (como já se diz), por um simulacro de professor é retirar-lhe pertinência no debate em causa; 
- esconder-se quem fala sob o disfarce de uma imagem maquinal, é dizer que a imagem veicula aquilo para que foi programada;
- falta valor às palavras da imagem, falta sempre valor às palavras que não são assumidas por quem as quer dizer.

Nem todos os meios são legítimos, mesmo quando as intenções são as melhores - e, no caso, julgo que são. Sinceramente, faço votos para que esta iniciativa não se instale no debate sobre a educação escolar pública, que tão necessário se percebe ser.

Maria Helena Damião

sábado, 9 de março de 2024

Literatura e formação humana

Por João Boavida

Há dois dias, num depoimento sobre António Pedro de Vasconcelos, Maria Filomena Mónica, que era sua amiga desde os anos sessenta de gloriosa memória, veio recordar, entre outras coisas desse tempo, como os amigos costumavam encontrar-se nos cafés e nas casas uns dos outros, os muitos livros que liam, e como os discutiam, os trocavam, os louvavam ou criticavam. Era de facto um tempo de grandes leitores. 
 
Nem todos os jovens liam assim tanta literatura, é certo, mas a leitura de livros estava no centro e quem não se contentasse com uma formação de superfície ou somente técnica ou academicamente apressada tinha que usar «com mão diurna e noturna», segundo dizia Alexandre Herculano, as grandes obras da literatura universal. 
 
Talvez que, pensei depois, sem essas muitas leituras, e essa paixão literária, nunca António Pedro de Vasconcelos teria feito os filmes que tiveram tanto sucesso em Portugal e tão amados foram pelo público. Lembrei-me disto porque ao ler o artigo do Prof. Eugénio Lisboa, grande amante de Stendhal, fiquei a saber, segundo o mesmo depoimento, que A. P. de Vasconcelos era também um apaixonado de Stendhal.

Um dos aspetos que mais aflige na educação da juventude de hoje é a ausência de leitura – de boa leitura. Já não falo do amor dos livros que nunca chegarão a ter mas, pior do que isso, do desinteresse pelas grandes obras se não forem iniciados nelas nem criarem a apetência e a exigência necessárias. O que a médio e longo prazo é dramático porque a dimensão humana e a sua complexidade, profundidade, sensibilidade, enfim, o melhor que a natureza humana tem passa-lhes ao lado deixando-as pessoas mais pobres, mais superficiais e mais indefesas contra todos os agentes deformadores e alienantes que não parecem diminuir, antes pelo contrário.

Sem darem por isso estão a deitar fora a imensa riqueza que a cultura humana foi acumulando ao longo de milénios. Mas não só, também não usufruem o prazer que dá a leitura de uma grande obra. Acresce, e era sobre isto que incidia o artigo do Prof. Eugénio Lisboa, sempre literariamente muito rico, há obras que nos tocam de tal maneira que nos transformam, nos engrandecem, nos fazem subir patamares na compreensão do mundo e de nós mesmos e que, só por nós, nunca seríamos capazes de subir. Um bom romance pode ser muito mais formativo que muitos tratados, e fazer de um jovem, às vezes ainda estouvado e irrefletido, um ser maduro, consciente e mais centrado em relação ao mundo, aos problemas e às pessoas que o cercam; além de muito mais inteligente.

Penso que no atual ensino do Português há uma debilidade muito grande ao nível da formação e da capacidade de usufruição literárias. É provavelmente o maior problema de tudo isto. E se o aluno não tiver em casa – e geralmente não tem - quem possa compensar essa deficiência literária fica para toda a vida sem o gosto de ler e sem a consciência do que está a perder.

E o problema tende a agravar-se, não só pela falsa noção de modernidade e de capacidade com que as novas tecnologias enganam pais e filhos, mas também porque os professores mais jovens correm o perigo de já virem a sofrer do mesmo, incapazes, portanto, de criar nos alunos o gosto de ler, porque eles próprios não o têm e nem sequer têm consciência da falta que isso lhes faz.

Ao contrário do que possa pensar-se o problema podia resolver-se com uma certa facilidade. Bastava que a formação dos professores de português desse mais atenção à formação do gosto literário, à criação de exigências estéticas e passasse a avaliar os professores em função disso. Se a formação exigisse competências nesse domínio específico e criasse formas de avaliação que especificamente as avaliassem, em pouco tempo as coisas começavam a melhorar. Seria um contributo multiplicador para a formação dos jovens, a todos os níveis, mas não me parece que haja, na esfera política, quem compreenda isto.

João Boavida

quarta-feira, 6 de março de 2024

TER OU NÃO TER LIDO UM LIVRO

Por Eugénio Lisboa

Quando tinha os meus catorze ou quinze anos, li um livro que, para sempre, me marcou. Penso, às vezes, poder dizer que a minha vida teria sido diferente, se nunca tivesse lido esse livro: LE ROUGE ET LE NOIR, de Stendhal, numa magnífica tradução de José Marinho.

Tudo nele me fascinou: desde a criação da personagem de Madame de Rênal e toda uma paisagem de personagens de uma sociedade francesa pintada com mão de mestre, até ao estilo bem descascado, ágil, contundente, herdeiro feliz de Voltaire. E uma bela história de amor, de grande beleza trágica. Stendhal tinha horror às gorduras de muita prosa então em vigor e, para dar à sua veloz pontaria, naturalidade e sobriedade, forçava-se, todas as manhãs, a ler o Código Civil.

O livro “apanhou-me” totalmente e fez, para sempre, cair a caspa que sujava a prosa que eu, por essa altura, escrevia para a gaveta. De alguma literatura gótica, eu saltava, bruscamente, para aquela pena bem afiada. A morte de Madame Rênal, uma das cenas mais sublimes de qualquer literatura, ocupa literalmente uma linha de texto, desprezando qualquer ênfase. Stendhal era um mestre para ficar, embora ignorado no seu tempo, excepto para os olhos perspicazes de Balzac.

Outro livro que muito me marcou, quase pela mesma altura, foi o romance de Sienckiewicz, QUO VADIS? Num estilo sem pathos, quase neutro, nada “interveniente”, o romancista polaco pinta-nos magistralmente as grandezas e misérias do império romano.

Uma história de amor serve de fio condutor a um desvelar de loucura e crueldade, de uma dimensão nunca vista. Os inesquecíveis diálogos entre Nero e Petrónio, em que este arrisca a vida, manipulando magistralmente o imperador, deixam marca perpétua no leitor empolgado. A morte de Petrónio é um cúmulo de beleza discreta e um anúncio de um fim de mundo. Neste romance, que se lê com sofreguidão, o adolescente leitor depara-se, pela primeira vez, com a condição humana nos seus limites de crueldade, mas também de desenfastiada elegância. Não é possível ficar imune a esta tempestade que varreu o mundo.

Outro livro, de entre os vários que me fazem pensar que eu não seria o mesmo se os não tivesse lido, está a novela de Tolstoi, A MORTE DE IVAN ILITCH. Num texto de não muitas páginas, o grande ficcionista russo mergulha intrepidamente os seus instrumentos de sondagem, num dos momentos mais dilacerantes da vida humana: aquele em que o remorso por uma vida mal vivida se alia à aproximação da morte, que vai lentamente debilitando um corpo indefeso. Numa cena que é o cúmulo da observação e da arte de escrever, Tolstoi descreve-nos o pobre juiz, devorado por um cancro, abraçado ao mujik que lhe trata da higiene, como se desejando que a forte energia que dele dimana se lhe comunicasse por osmose: literalmente, um filho nos braços da mãe, que o aleita e lhe dá segurança. Esta novela de Tolstoi, apesar da sua pequena dimensão, não desmerece, na minha opinião, das grandes construções romanescas que lhe deram fama. 

Há livros que admiramos, mas há outros que nos transformam profundamente. Estes três não foram os únicos que me deixaram dedada profunda. Há outros, não muitos, de que falarei noutro dia, se para isso me sentir inclinado. 

Eugénio Lisboa

VITA BREVIS

A vida é uma fracção de segundo,
num universo que não dá por ela.
Quando se nasce, está-se moribundo,
se usarmos, da galáxia, a tabela.

Nascemos, crescemos e descobrimos,
e, no fim deste arco ascendente,
após termos enfrentado abismos,
fica rápido curso descendente.

A vida humana é só um momento,
bem cheio de barulho e de fúria,
como, em fim de colossal portento,

viu Macbeth, reduzido à penúria.
Vive-se (pouco) e logo se morre,
num universo que mal se percorre.
                                                                        Eugénio Lisboa

"O QUE HÁ A DIZER SOBRE EDUCAÇÃO E A FORMA COMO ESTAMOS NO MUNDO"

Por Maria Helena Damião e Isaltina Martins

O jornalismo contribui para o esclarecimento da sociedade, se e quando, face a temas relevantes, difíceis e polémicos, dá a conhecer perspectivas diversas que são elaboradas sobre eles. Pode ser um esclarecimento que suscite e, até, acentue dúvidas, mas, como sabemos, num registo filosófico e científico honesto, as dúvidas existem e, se existem, precisam de ser encaradas e ponderadas.  

O Diário de Notícias, pela mão do jornalista Jorge Andrade, pode ajudar-nos a repensar o sentido da educação e, por acréscimo, da função docente, através de duas entrevistas recentes: uma de que aqui demos conta; outra a António Damásio, cujo título é “Há a substituição da educação, do tempo pessoal e de reflexão, pela diversão e entretenimento”. O seu conteúdo é manifestamente dissonante, traduzindo a falta de consenso desse sentido, num momento em que se vê (de novo!) reequacionada pelo "solucionismo tecnológico", na expressão de Evgeny Morozov.

Imagens recortadas daqui
O contexto desta última entrevista foi o seguinte:

Na sequência do seu projecto “Futuros da Educação”, a UNESCO, além de disponibilizar relatórios e outros documentos, tem promovido debates e conferências que o apresentam e esclarecem. Trata-se de um projecto que se distancia em múltiplos aspectos do projecto "Futuro da Educação e Competência 2030", da OCDE. Em mais um ciclo de conferências, que tem lugar no Instituto de Educação de Lisboa (ver aqui), um dos convidados foi este neurobiólogo. A entrevista, de que deixamos abaixo algumas passagens, antecedeu a sua intervenção com o título The new science of consciousness.

Jorge Andrade nota, a iniciar a conversa, que António Damásio esclareceu não ser “especialista em educação", o que é um bom augúrio num tempo em que a tendência é qualquer um, independentemente da sua área de formação, fazer declarações, na forma de afirmações inabaláveis, sobre educação.

Afirmou há uns anos em entrevista que “se não houver educação maciça, os seres humanos vão matar-se uns aos outros”. Associou a carência de educação ao crescimento de movimentos anti-imigração, à ascensão de partidos neonazis de nacionalismo xenófobo. Face ao panorama atual, somos levados a crer que os sistemas educativos estão a falhar?
Em parte, a resposta é um sim. Os sistemas educativos não estão a responder aos desafios que enfrentamos. A situação inclui uma transformação profunda do dia a dia que se relaciona com diversos fatores, como a aceleração do ritmo de vida, a perda de influência de sistemas religiosos que, tradicionalmente, têm funcionado como moderadoras da agressividade e da violência, a transformação do entretenimento que, no presente, é muito mais violento do que no passado. O fator que possivelmente é o mais importante prende-se com a transformação imposta pelas redes sociais.

(...) Deparamo-nos atualmente com crianças e jovens absortos horas a fio nas redes sociais. De certa forma, estas redes entram na mente das crianças, monopolizam-lhes a atenção, formam-lhes juízos. É aí que encontra os perigos a que se refere?
Um dos fatores que contribui para o aumento da violência prende-se com a desregulação que resulta das redes sociais. Hoje, há a substituição da educação, do tempo pessoal e de reflexão, pela diversão e entretenimento. Há o confronto constante com a ação, por vezes violenta, como substituta da reflexão e da calma. Temos uma imagem permanente de violência e de ação, com a exibição de conflitos e incompatibilidades, em vez de propostas de soluções. Atualmente, há a exaustão frente ao conflito e a vulgarização do mesmo. É muito difícil as pessoas terem tempo para pensar soluções alternativas quando tudo aquilo que lhes é oferecido é violência e confronto.
Face ao exposto, de que tipo de educação precisamos? Ou, se preferir, de que modelo de escola precisamos?
Aquilo que antevejo (...) é uma educação que tenha um bom princípio do ponto de vista da realidade (...) termos uma ideia tão aproximada do real quanto possível, daquilo que é a componente física que nos rodeia e daquilo que somos do ponto de vista biológico e do ponto de vista humano nas interações com outros seres humanos. Claro que há o risco de uma educação fundada nesses elementos ser demasiado científica e, por isso, parecer menos humana. A única forma que vejo de compensar esta realidade é com aquilo que, de uma forma muito genérica, se descreve como artes e humanidades. Ser educado sem o respeito pela música, artes visuais, literatura, impõe um empobrecimento extraordinário (...). Um ser humano com gravidade e profundidade tem de apreciar o que são os outros seres humanos, os seus problemas e aquilo de que são capazes de conceber em matéria de invenção, de descoberta, de criação de objetos de arte (...). É essa reunião de elementos que, julgo, terá sido sempre o ideal educativo. Os ideais greco-romanos de educação podem ser perfeitamente adaptados ao momento atual, sem desmerecer nessa adaptação tudo aquilo que a técnica moderna nos oferece (...). Uma forma de elevação que não seja aquela que se vive na internet, nas redes sociais (...). Tudo funciona desta forma desligada e desequilibrada.
Tem estado a falar das redes sociais. Gostaria de o ouvir a propósito da Inteligência Artificial. Estaremos a sobrestimar a Inteligência Artificial?
(...) há uma IA que vem da nossa inteligência natural. A IA é inventada por seres humanos, mas está a assumir características muito particulares que se prendem em especial com o extraordinário êxito (...) dos denominados large language models (...). Transformaram-se em coisas muito populares, através de sistemas como o ChatGPT, que permitem, de uma forma muito poderosa, inventar histórias, responder a perguntas variadas e gerar imagens. Funcionam tanto verbalmente como do ponto de vista imagético e visual. Em si mesmo, carregam um problema, o de dar a impressão de que os sistemas artificiais são capazes de fazer todas estas coisas de uma forma única, nunca utilizada por seres humanos. Isso é falso.
Porquê?
O que acontece é que estes sistemas são, no fundo, baseados em sistemas humanos porque a informação e a descoberta da forma como se podem fazer estas operações que parecem abstratas é resolvida através de uma massiva análise de produtos humanos. Para construir estas respostas, a máquina recorre a milhares de milhões de textos inseridos na internet (...) e que a determinado ponto constroem frases simpaticamente compostas e que fazem sentido. A ideia de que aquilo que ali está é puramente artificial, é falsa (...).
Sim, mas são sistemas com a capacidade de aprendizagem e que dão neste momento os primeiros passos.
Há o problema do caminho futuro destes sistemas (...). No caso das vantagens, se forem bem controlados podem aumentar o poder prático da inteligência humana, o que não me parece que seja desfavorável, embora os problemas que estão ligados ao seu uso no que respeita ao desemprego sejam extraordinários (...). Há outro risco: à medida que a autonomia destes sistemas cresce, há a possibilidade de, chegados a um certo ponto, terem uma autonomia completa. Aí, em vez de estarem sob o controlo humano, benévolo e benevolente, estarão sob um controlo autónomo e farão o que entenderem. As opiniões estão muito divididas sobre se isso é um problema real ou um problema que traduz um cenário improvável (...).
Na palestra que vai proferir deter-se-á na questão da consciência versus consciousness, aquilo que na língua portuguesa podemos definir como a consciência da nossa existência interna e externa. São palavras que, per si, se revelam traiçoeiras.
(...). O problema é que na língua portuguesa dizemos “consciência” e estamos a referir-nos não só ao inglês consciousness como também a conscience (...). Conscience prende-se com aspetos puramente morais, relacionados com o comportamento humano, com valores corretos ou incorretos, com a verdade e a mentira. Já a consciência no sentido que nos traz a língua inglesa de consciousness, prende-se com o facto de sermos capazes de reconhecer aquilo que é a nossa própria identidade, o nosso self, e que isso nos faculta a entrada em todo o mundo mental e real que nos rodeia. A consciência, nesse sentido, o de consciousness, é essencial para sermos seres humanos com o sentido daquilo que está à sua volta e com a possibilidade de valorizar as coisas. Não se pode ter consciência no sentido moral sem se ter consciência do sentido do reconhecimento de nós mesmos. Na palestra vou afirmar que tudo aquilo que há a dizer sobre educação e a forma de como estamos no mundo, só faz sentido depois de sabermos que aqui estamos e que esta passagem se deve à consciousness.

A BOA FÉ DOS FILÓSOFOS

A clareza é a boa fé dos filósofos.
Vauvenargues

A clareza de escrita não é um dos valores mais prezados pela classe intelectual e não o é, em especial, por muitos universitários que refugiam a sua ignorância sob o véu de um estilo opaco, obscuro e contrafeito. Coisa de má fé, se tem razão o amável filósofo Vauvenargues, citado em epígrafe. Dizer coisas importantes com grande simplicidade, como fazem filósofos (Russell) ou cientistas (Jean Rostand, admirável pensador aforista, na linha dos grandes do passado), parece coisa de simplórios, aos convicto cultores do opaco.

As dissertações académicas costumam ter horror à clareza, como se esta não estivesse à altura da majestade do empreendimento: como se a clareza e a simplicidade da formulação fossem coisa de saloios. 
 
Nunca me esquecerei de um episódio passado com uma ex-aluna minha, da Universidade de Lourenço Marques. Já a viver em Lisboa, resolveu doutorar-se e, um dia, pediu-me que lesse e comentasse parte da dissertação que já tinha escrito. A certa altura, encrespei-me com certa passagem muito tortuosa e obscura e observei-lhe: “O que quer V. dizer com isto?” Ela imediatamente o esclareceu, o que me levou a perguntar-lhe: “Se V. o sabia dizer assim, por que o não disse?” ao que respondeu, meio enxofrada: “Também V. não tolera o mais pequeno teor de opacidade…” Respondi-lhe que a opacidade não era, em si, um valor. E que só se admitia, quando não houvesse alternativa. E o não haver alternativa tinha muito que se lhe dissesse. 
 
Wittgenstein era de opinião que, se um pensamento não conseguia ser exprimido de forma clara e simples, era por não estar ainda suficientemente amadurecido. O grande físico dinamarquês, Niels Bohr, era acutilantemente categórico: “Verdade e clareza são complementares.”

A clareza tem tido os seus campeões, desde Aristóteles (“A primeira qualidade do estilo é a clareza”), passando por Galileu (“Falar obscuramente, qualquer um sabe, com clareza, raríssimos”), por Leibnitz (“No mundo do espírito, busque clareza, no mundo material, busque utilidade”), por Voltaire, que frequentemente a exaltou e admiravelmente a praticou, por Anattole France, herdeiro refinado de Voltaire (“Um bom estilo, afinal, é como um raio de luz que entra pela minha janela no momento em que escrevo, e que deve a sua clareza à união das sete cores das quais é composto. O estilo simples é parecido com a claridade branca”), Jean Cocteau (“Escrever é batermo-nos com tinta, para nos fazermos entender”), até Camus (“Os que escrevem com clareza têm leitores, os que escrevem de maneira obscura têm comentadores”).

A clareza sempre me fascinou, desde a leitura de bons mestres que li na minha adolescência: Voltaire, Stendhal, Montaigne, António Vieira, António Sérgio, José Régio, entre outros. E passei a desconfiar de grossa batota, nos cultores do opaco e do obscuro. Algo me parecia torto, no espírito daqueles que escreviam torto. E nunca me arrependi. Tentei sempre ser claro com os meus alunos e com os meus leitores. Grandes cientistas são frequentemente belos escritores. Não perco um livro de ensaios de Peter Medawar, o fundador da imunologia, tal a elegância e claridade das suas formulações.

Jean Rostand, o investigador das rãs, é um admirável cultor da claridade da linguagem e um dos grandes pensadores aforistas da língua francesa. Dito isto, tenho más notícias para dar. A minha experiência com a publicação de textos, neste blog, tem-me tornado cada vez mais céptico, acerca dos benefícios ou vantagens da clareza. Procuro ser o mais claro possível, naquilo que escrevo. Mas noventa por cento dos meus comentadores vêem preto onde está branco e branco onde está preto. A luz que o texto emite não os afecta: não conseguem ler o que está no texto, porque olham apenas com os óculos da ignorância ou do preconceito ou mesmo da má fé. Para eles, a clareza é um desperdício. Se eu disser que Tolstoi foi um enorme escritor, mas um ser humano complexo e com grandes defeitos (coisa que qualquer biografia documenta e sobre a qual há milhares de páginas de comentário publicadas), acusam-me de estar a faltar à verdade ou de ser contra a Rússia…

Não há dúvida, para estes zarolhos, o branco é preto. Eis um debate interessante: quais os poderes da clareza, num universo em que a deseducação em massa impera? É isto que sai das escolas: a incapacidade de ler direitinho? A ignorância contente e atrevida? A má fé como instrumento de trabalho? A total falta de respeito pelo saber de quem sabe? A lisinha falta de civismo? Foi para isto que quisemos uma democracia esclarecida? Vale a pena meditar em tudo isto e dou-o, com humildade, aos pais dos alunos, aos professores e ao próximo ministro da educação.

Eugénio Lisboa

terça-feira, 5 de março de 2024

HAVERÁ ALGO DE MAIS NOBRE NA PROFISSÃO DOCENTE DO QUE ENSINAR OS ALUNOS?

Por Maria Helena Damião e Isaltina Martins
 
Uma das promessas (falaciosas) em que assenta a tentativa de imposição das antigas, novas e hipernovas tecnologias da informação na educação escolar é a de que elas libertam os professores da tarefa de ensino, podendo estes, por fim, realizar outras tarefas "criativas" e "edificantes". Isto significa, em concreto, que os professores poderão (e deverão) deixar de transmitir conhecimentos escolares e de estimular capacidades que os alunos, como seres humanos que são, têm em potência. Tornar-se-ão guias, orientadores... ou, numa linguagem mais "moderna", líderes, mentores, coachs...

Esta nota é a propósito de uma entrevista publicada no Diário de Notícias com o título “O uso de IA no ensino pode libertar os professores para as tarefas mais nobres da sua profissão”. O entrevistador foi o jornalista Jorge Andrade e o entrevistado um professor catedrático do Instituto Superior Técnico, no Instituto de Telecomunicações; o contexto foi a realização de uma conferência ("IA pode mudar processos de ensinar e de avaliar alunos?”) integrada num ciclo designado por "Da Inteligência Humana à Inteligência Artificial (IA)", realizado recentemente na Academia das Ciências de Lisboa. 

Reproduzimos abaixo algumas passagem da dita entrevista, respeitantes: 1) ao contexto económico que justifica o acolhimento das hipernovas tecnologias na educação escolar; 2) às concepções (muito discutíveis) de aprendizagem; e 3) às concepções (não menos discutíveis) de ensino, que foram aquelas que mais nos chamaram a atenção pela razão que acima enunciámos.

1)
"(...) o desenvolvimento da aprendizagem automática (AA) e da Inteligência Artificial (IA) está intimamente ligado a factores económicos. No final do século XX, o modelo de negócio dominante na Internet era o acesso a conteúdos pagos. Com a generalização explosiva da Internet e dos smartphones, a superabundância desvalorizou o acesso, transferindo enorme importância e valor para a procura e a recomendação. O modelo de negócio associado à procura passou para a publicidade direcionada a cada utilizador e para as redes sociais. Aí, o negócio gira em torno da captura e conversão da atenção humana em valor comercial. Essa competição pela atenção e informação acerca dos utilizadores impulsionou o desenvolvimento de tecnologias de IA/AA, com avultadíssimos investimentos em infraestruturas, recursos humanos e investigação. As empresas líderes nesse campo (...) disponibilizam ferramentas gratuitamente e recursos que antes eram restritos a especialistas. Esta cultura de abertura é-lhes benéfica pois ajuda a formar as grandes quantidades de especialistas, de que precisam, na utilização destes recursos, podendo ser visto como uma forma de soft power (...)"
2)
A IA tem o potencial de personalizar a aprendizagem, fornecer tutoria inteligente e criar uma experiência educacional mais adaptada, eficaz e acessível. Por exemplo, através da análise de dados de desempenho, ou do estilo de aprendizagem e pontos fortes e fracos dos alunos, um sistema de tutoria pode criar planos de aulas individualizados e adaptativos para cada aluno. Na educação, a IA/AA pode ser usada para desenvolver plataformas de aprendizagem online, aplicações de tutoria e ferramentas de avaliação automática. Embora a IA na educação ainda esteja em desenvolvimento, o seu potencial para revolucionar a forma como aprendemos e ensinamos é enorme. Há motivos para pensar que o futuro da educação será mais personalizado e acessível (...). A IA/AA permite levar à educação a personalização e adaptação do ensino às características, interesses e objectivos de cada estudante (...).

3)

Se os alunos se habituarem a recorrer a IA para obter respostas ou gerar conteúdos de modo acrítico, a sua capacidade de pensamento crítico e de formar opiniões independentes podem ser prejudicadas. Os professores precisam de garantir que estas técnicas são usadas para auxiliar a aprendizagem, não para a substituir. Um outro risco é a exacerbação de desigualdades. Nem todas as escolas ou alunos terão acesso igual a ferramentas avançadas de IA. Isso pode aumentar o desnível de desempenho entre alunos de diferentes origens socioculturais, se não se garantir o acesso equitativo a essas tecnologias. Se os dados usados para treinar os sistemas de IA educacionais forem enviesados ou insuficientemente abrangentes, por exemplo, contendo apenas certos subgrupos da população, estes sistemas podem perpetuar esses vieses (...). Finalmente, como em qualquer sistema que adquire grandes quantidades de dados dos utilizadores, há riscos de fugas ou de má utilização desses dados, pelo que é imperativo usar medidas de segurança e privacidade de dados (...).
A utilização de IA/AA no ensino não dispensa os professores, mas permitem-lhes focar naquilo que é o seu papel fundamental: o estímulo da curiosidade e do desejo de aprender. Para além das circunstâncias e revoluções tecnológicas do momento, a essência do ensino e aprendizagem está no estímulo do interesse e curiosidade por um conjunto coerente de matérias e na capacidade de orientar e ajudar a satisfazer essa curiosidade (...). Focando-se no estímulo da curiosidade, os professores incutem o gosto pela aprendizagem ao longo da vida, característica crucial num mundo em constante mudança, pois é fundamental para o crescimento pessoal e profissional (...).
O uso de ferramentas de IA no ensino pode libertar os professores para as tarefas mais nobres da sua profissão: motivação e aconselhamento académico; estabelecimento de relações empáticas com os estudantes, compreendendo as suas necessidades e dando apoio emocional; promoção de interação entre os estudantes e de um ambiente de diálogo e cooperação; ensinar os estudantes a questionar, argumentar e a considerar as implicações éticas do conhecimento. O que se pede aos professores, na minha opinião, é que tentem usar a IA para ganhar espaço e tempo para assumir estes papéis, que são e continuarão a ser fundamentais (...). Mas, mais importante, é o que se pede a quem tutela o ensino: que compreenda que estas são as responsabilidades mais importantes dos professores e que são decisivas, com ou sem IA, para a formação de futuros cidadãos bem formados, esclarecidos, responsáveis, solidários, capazes de aprender e de se desenvolver ao longo da vida. A IA não deve ser usada para simplesmente aumentar a “eficiência” do ensino, mas sim para valorizar o papel dos professores (...).

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

O HOMEM, ESSE DESCONHECIDO

Por Eugénio Lisboa

O título é o de um livro célebre, da autoria do médico Alexis Carrel, que ganhou o Prémio Nobel de medicina, por ter congeminado uma técnica que permitiu as transfusões de sangue, numa altura em que ainda não havia anticoagulantes. O livro é fascinante e admiravelmente escrito, embora possa estar hoje já um tanto desactualizado. Mas não está desactualizado, na medida em que nos chama a atenção para a extrema complexidade desta máquina que é o ser humano. Máquina que muitos grandes escritores, da Antiguidade para cá, têm tentado, com êxito desigual, decifrar. A grande literatura serve para nos ajudar a resolver algumas das perplexidades e enigmas que o viver com os outros e com nós mesmos nos põe. Quantas vezes os nossos amigos ou simples conhecidos nos surpreendem, de repente, por um inesperado comportamento, que os revela, a uma luz nova e nem sempre favorável. Quanto tempo passamos, às vezes, junto de alguém, sem realmente o conhecermos. O ser humano é profundamente contraditório e isso pode tornar o convívio com ele um terreno minado.

Toda a obra do nosso escritor José Régio, especialmente os seus romances JOGO DA CABRA CEGA e A VELHA CASA, mas, de um modo geral, toda a obra, são um dilacerante inventário dos mal-entendidos e dos obstáculos traiçoeiros, que, na nossa vida, se opõem a um convívio fluente e transparente. Mal-entendidos com os outros, com nós mesmos ou com um qualquer transcendente.
 
A grande literatura ilumina os lugares mais recônditos da personalidade humana e, mostrando-nos a complexidade do ser humano, convida-nos a não sermos levianos ou simplistas, na avaliação dos outros. Ou também de nós. Mesmo as grandes figuras que admiramos – talvez, sobretudo, as grandes figuras – contêm venenos perigosos na composição dos seus organismos. 
 
Um Tolstoi, que nos legou, para sempre, as grandes construções romanescas, que são GUERRA E PAZ e ANA KARENINA,e nos deu o exemplo de uma vida de criação cheia, revelou-se, como homem, cheio de fragilidades e fanatismos perigosos. Este cristão e moralista agressivo, pregador impetuoso de uma castidade assanhada, não hesitou em exercer o seu droit de seigneur sobre, pelo menos, uma das suas escravas, o que talvez esteja na origem do seu belo romance RESSURREIÇÃO. O mesmo Tolstoi, que, na sua novela A SONATA A KREUTZER, propunha o exercício de uma alucinada castidade absoluta e terminal, inevitavelmente despovoadora do planeta, assaltava sexualmente a mulher, numa fúria insaciável de macho lascivo e assíduo, ou seja, faz o que eu digo e não o que eu faço. Rodeado de discípulos tão fanáticos como ele, transformou a vida da mulher num inferno, fazendo-a, enquanto, de modo insaciável , a assediava sexualmente, copiar, para o editor, a novela delirante na qual mandava para o inferno os não castos… O que estou a dizer ou a querer dizer, é que este gigante da arte literária, provavelmente o maior romancista do século XIX, podia também ser um dos mais perversos fanáticos que a Rússia conheceu. 
 
Isto é, toda a avaliação simplista, não poliédrica, de um ser humano, é necessariamente inepta, desfocada e injusta. 
 
O mesmo poderíamos dizer de Dostoiewsky: este admirável escafandrista dos mares infindáveis da alma humana, criador das figuras admiráveis de Aliocha Karamazov, do Príncipe Mitchkin ou da Sonia do romance CRIME E CASTIGO, foi também o criador das figuras demoníacas de Ivan Karamazov e do sinistro Stavroguine, da novela A CONFISSÃO DE STAVROGUINE. Esta novela, aliás, era simplesmente um capítulo que escrevera para o seu romance OS POSSESSOS, mas que não teve a coragem de nele inserir. Tratar-se-ia da confissão de um crime terrível cometido pelo próprio Dostoiewsky, que quis punir-se de o haver cometido, confessando-o ao escritor que mais detestava, o grande Ivan Turguenev. O autor de PAIS E FILHOS recebeu a confissão daquele horror, com irritante mutismo e frieza, tanto mais ofuscantes, quanto mais Dostoiewsky se autoflagelava e se lhe rojava aos pés. No fim, desesperado, com a falta de empatia de Turguenev, o autor de AS NOITES BRANCAS, furioso, saiu, impetuosamente, batendo portas. 
 
Conto estas coisas, apenas para mostrar como são contraditórios os seres humanos e neles coabitam grandezas e misérias. 
 
Uma época que nunca deveremos esquecer é a do senador Joseph McCarthy e do terror instalado nos meios intelectuais e artísticos americanos, com a sua caça às bruxas, o qual via comunistas escondidos nos armários e debaixo das camas: bastava divergirem do credo vigente ou terem convivido com amigos comunistas. Neste reino do terror houve heróis (Arthur Miller, Kirk Douglas, Dalton Trumbo, Humphrey Bogart, Lauren Bacall, Bette Davis, John Huston, entre outros) e vilãos (Adolphe Menjou, John Wayne, Elia Kazan, Edward Dmytryk, Lee J. Cobb, Edward G. Robinson, entre muitos outros ). Entre os vilãos, estavam estrelas de primeira grandeza do cinema americano, como Elia Kazan e o actor Lee J. Cobb, que, puxados ao limite da resistência humana, acabaram por ceder, tornando-se bufos. Mas talvez valha a pena meditar se os mais vilãos são os que cederam à chantagem ou os que a fizeram, criando um reino do terror conducente à revelação das maiores fragilidades humanas. 
 
Dou só um exemplo: o actor Lee J. Cobb, acusado de ser comunista, recusou-se a colaborar com os inquisidores, durante dois anos. Recusou-se a dizer se era comunista e a nomear outros comunistas. Foi perseguido de todas as maneiras e, por fim, admitiu ser comunista e denunciou 20 camaradas. Mais tarde, tendo sido indagado sobre o seu comportamento, respondeu assim: “Quando os poderes dos EUA se direcionam a uma pessoa, em particular, isso pode ser aterrador. A Lista Negra é apenas o começo – ficar privado de trabalho. O passaporte é confiscado. Isso não é muito importante. Mas não sermos capazes de nos movimentarmos, sem sermos seguidos é outra coisa. A partir de certo ponto, as ameaças implícitas tornam-se explícitas e as pessoas sucumbem. A minha mulher sucumbiu e foi internada numa instituição. O HUAC (House Un-American Activities Committee) fez um acordo comigo. Eu estava completamente nas lonas. Não tinha dinheiro e não tinha como pedi-lo emprestado. Tinha despesas com os meus filhos, (…) Precisava de arranjar trabalho.” 
 
Quem acha que pode, atire a primeira pedra. Por mim, prefiro orientar a minha artilharia na direcção de quem cria um universo, onde as fraquezas humanas se revelem e reduzam, para todo o sempre, a autoestima do que sucumbiu.

P. S. – Quem sugere, sob anonimato, que alguma vez eu tenha feito avaliações de mérito, por critérios ideologicamente enviesados, não passa de um vil caluniador ou de um ignorante. Se de alguma coisa me orgulho é de sempre ter feito uma crítica saudavelmente poliédrica e independente de ideologias. Visconti, um comunista, foi sempre um dos grandes cineastas do século XX e uma ostensiva admiração minha. E nunca escondi a minha admiração pela atitude que Marx teve em relação à liberdade dos artistas. Mas os ideólogos duros e insensíveis sempre tiveram dificuldade em entender estas coias. Até porque nunca leram Marx e apenas consultaram os seus “substitutos”.

Eugénio Lisboa

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

A AVALIAÇÃO REDUTORA

Por Eugénio Lisboa

Os ideólogos absolutos simples têm o hábito nefasto de avaliar o talento e as obras de escritores, artistas e cientistas, não por esse talento, mas por razões em tudo exteriores ao valor intrínseco dessas obras. Um cientista não é válido porque é judeu, um escritor é descartável porque é de direita ou porque é de esquerda ou porque não “se compromete”. Outro é lançado ao inferno porque tem vícios sexuais. Por dá cá aquela palha, lança-se o labéu de “fascista” a gente que simplesmente “se acomodou” como se acomodaram tantos que se dizem de esquerda. É uma avaliação assanhada, intolerante, a preto e branco, como se um grande artista tivesse de ser, ao mesmo tempo, uma virgem impoluta em busca de canonização.

Do que estes robespierres se esquecem é de que, a utilizar esta escala de valores, muito do património cultural da humanidade vai pelo esgoto abaixo, porque, afinal, os heróis eram também vilãos. Os exemplos abundam e temos de viver com eles. 
 
Jean-Jacques Rousseau, que nos legou duas joias literárias – LES CONFESSIONS e RÊVERIES D’UN PROMENEUR SOLITAIRE – foi o mesmo que pôs cinco filhos na roda. Voltaire, destemido combatente pelos direitos humanos e notabilíssimo ficcionista, poeta, dramaturgo, historiador, e excepcional epistológrafo, que pagou as suas ousadias com a Bastilha e com o exílio, praticava desavergonhadamente a agiotagem. O grande Camilo, em muitas das acções da sua vida, não foi flor que se cheirasse. André Gide era pedófilo. Proust sabujava aristocratas, a quem escrevia intermináveis cartas soporíferas. Hemingway, o grande mestre do conto moderno, era um irredimível misógino e um bom sacana. O grande Faulkner, um dos maiores romancistas que a América produziu, tomou, em relação aos negros, atitudes que lhe valeram o epíteto de “racista silencioso”. Wagner foi o monstro que se sabe. Pirandello, um dos grandes dramaturgos do século XX e não menor contista, vestiu a camisa preta dos fascistas. D’Annunzio foi abertamente fascista. O grande Ibsen, autor de algum do melhor teatro do mundo, era perdido e achado por condecorações e ficava muito zangado quando lhas não davam ou lhas davam de pouco valor. Picasso, como ser humano e cidadão, estava também longe de ser flor que se cheirasse. Sartre, durante a ocupação, recusou-se a integrar a Resistência e acomodou-se menos mal com os ocupantes. Céline pactuou abertamente com os nazis e, no final da guerra, para não ser fuzilado, fugiu para o norte brumoso. 
 
Que fazer da obra de toda esta gente e de outra que eu aqui não citei?
Mandá-la para a lixeira? Os ideólogos, provavelmente, acham que sim.
O que prova apenas uma coisa: eles nunca foram realmente capazes de compreender nem apreciar as grandes obras nem o preço alto que se paga a produzi-las.

Eugénio Lisboa

ABRAHAM GOTTLOB WERNER (1749-1817)

À atenção dos professores de Geologia
Por A. M. Galopim de Carvalho

Geólogo e mineralogista alemão, autor de uma estratigrafia geral, à escala do planeta, e de uma teoria que fez história e ficou conhecida por Neptunismo. Foi professor ilustre da Academia de Minas de Freiberga, na Saxónia, de enorme prestígio na Europa do seu tempo, e director do Geognostische Landesuntersuchung Sachsens (Serviço de Investigação Geológica e Mineira) deste estado germânico.

Segundo a sua concepção neptunista, todas as rochas, excepto as lavas solidificadas dos vulcões activos, eram tidas como materiais depositados e petrificados no fundo do que designou por Oceano Primordial que, segundo ele, outrora cobrira toda a Terra, incluindo os cimos montanhosos. Explicava que águas profundas e turvas haviam contido, em solução ou em suspensão, todos os materiais que formam as rochas da crosta terrestre. Granitos, basaltos, pórfiros, gnaisses, calcários, xistos e muitas outras rochas eram aceites como precipitados marinhos. Grauvaques e arenitos eram vistos como o resultado de decantações terrígenas. Dizia, ainda que, quando as águas baixaram, as rochas, assim formadas e seriadas segundo uma sequência estabelecida, emergiram, ficando integradas na paisagem actual, com todo o relevo que a caracteriza.

Deve lembrar-se que a teoria neptunista surgiu na sequência de séculos de crença no Dilúvio, tal como está descrito no Velho Testamento e, até então, ensinado pela Igreja Católica. Para os diluvianistas todos os acontecimentos geológicos estavam descritos nos Textos Sagrados, grande parte dos quais relacionados com catástrofes, única maneira de explicar tão grandes transformações nos reduzidíssimos cerca de 6000 anos atribuídos pelos clérigos à idade da Terra e do homem. A história do planeta contida na teoria werneriana não colidia com as Sagradas Escrituras. Antes, sim, as explicitava numa linguagem tida por científica. O neptunismo vinha em apoio da Bíblia, pois tranquilizava a Igreja que trazia a geologia sob apertada vigilância. Nesta óptica, foram muitos os religiosos que se interessaram por esta ciência em crescimento, cuja aceitação radicou ainda no prestígio do seu autor, considerado um dos grandes mestres da Europa do século XVIII.

Apoiando-se, em grande parte, nas investigações dos seus conterrâneos Georg Christian Füchsel e Johan Gottlieb Lehmann levadas a efeito nas montanhas do Hartz, Werner desenvolveu uma ideia de sequência estratigráfica formulada num contexto regional e propôs uma estratigrafia à escala do planeta, numa concepção teórica, à luz do saber de então, que fez época e escola.

Em 1787, Werner publicou, na cidade de Dresden, uma pequena brochura intitulada “Kurze Klassifikationen und Beschreibung der verschiedenen Gebirgsarten”, na qual descreveu, das mais antigas para as mais recentes, a sucessão por ele estabelecida, composta por cinco grandes unidades ou Gebirge (um antigo termo mineiro):
1. Urgebirge - unidade primitiva ou de terrenos primários, formada por rochas então entendidas como precipitados marinhos, em especial granitos, pórfiros, gnaisses, xistos e outras rochas que hoje sabemos serem ígneas, umas, e metamórficas, outras.
2. Übergangsgebirge - unidade de transição, depositada logo que o nível do mar começou a baixar (não explica para onde foram as águas). Os correspondentes depósitos passaram a um misto de precipitados químicos e de deposição detrítica terrígena, com escassos fósseis. Esta unidade é composta pelos terrenos que actualmente atribuímos ao Paleozóico superior, com grauvaques, calcários e diabases;
3. Flötzgebirge - representada por terrenos estratificados do Pérmico, Triásico, Jurássico, Cretácico e Terciário, incluindo calcários, arenitos, lignitos e basaltos antigos. A inclinação dos estratos era vista como uma adaptação dos depósitos ao relevo original submerso e, logo que as águas ficassem mais tranquilas, os estratos tendiam para a horizontalidade.
4. Aufgeschwemmte Gebirge - unidade formada por depósitos aluviais não consolidados (cascalheiras, areias, argilas), em resultado da desagregação e erosão das rochas mais antigas.
5. Vulkanische Gesteine - unidade constituída por lavas e tufos vulcânicos recentes. Deve acentuar-se que, na concepção neptunista, nem os granitos da Urgebirge, já então descritos nos seus aspectos petrográficos, nem as diabases da unidade de transição, nem sequer os basaltos antigos da unidade Flötzgebirge eram aceites como gerados a partir de um magma fundido. Apenas as lavas e os piroclastos do vulcanismo actual (cujas erupções podiam ser presenciadas) eram vistos como produtos magmáticos expelidos pelos vulcões e, daí, o nome Vulkanische Gestein. Tratava-se, pois, de um conhecimento, na altura, pouco acessível aos habitantes do centro e norte da Europa (incluindo os cientistas), mas, pelo contrário, bem vivido pelas populações mediterrâneas, de há muito familiarizadas com este fenómeno geológico.
Era inegável a génese não marinha destas lavas e destes piroclastos, evidências de origem vulcânica bem conhecidas e descritas por homens ilustres como Plínio, no início do primeiro milénio, ou por Agricola, no século XVI. Todavia, para os neptunistas, este vulcanismo, que não podiam negar, resultava da fusão de outras rochas em regiões onde tivesse lugar a combustão de camadas subjacentes de carvão ou de betume, uma concepção errónea vinda da Antiguidade, expressa, por exemplo, no poema latino do século I, Aetna, e reforçada pelo facto de já então serem conhecidas na Europa importantes minas de carvão fóssil. Entre quem assim pensava, contava-se o francês Étienne Guettard (1715 - 1786) que, tendo sido um neptunista convicto, se tornou um dos primeiros defensores da teoria vulcanista, então a despontar timidamente.

A sucessão estratigráfica divulgada pelo grande Mestre de Freiberga, vingou por algumas décadas, até meados do século XIX com o valor de uma escala litostratigráfica global que, embora cheia de imprecisões, era a possível nesse tempo. Nesta concepção, os materiais depositados pelas águas do dito Oceano Primordial teriam dado origem aos continentes e formado, praticamente, todas as rochas; estratificadas ou não; que os constituem.

A concepção de Werner era amplamente confirmada nos Alpes pelo suíço Horace de Saussure (1740 – 1799) e nos Urais pelo alemão Peter Simon Pallas (1741 – 1811).

Porém, duas grandes questões abalavam o neptunismo. Uma delas vinda de um dos seus críticos mais intransigentes, o italiano e contemporâneo Scipio Breislak (1748 - 1826), que perguntava, com alguma ironia, onde se havia escondido toda a água desse imenso oceano global e insistia, dizendo que, por muito grande que fosse, esse oceano não poderia ter contido em suspensão todos os constituintes das rochas da imensa crosta. A outra questão centrava-se na origem do basalto.

O geólogo italiano Arduíno de Pádua e os franceses, Jean-Louis Giraud Soulavie, Faujas de Saint-Fond e Déodat Dolomieu, seus contemporâneos, familiarizados com o vulcanismo actual e subactual, defendiam que o basalto antigo (entendido, no modelo neptunista, como um precipitado químico, a partir das águas do dito oceano) era, pura e simplesmente, rocha solidificada a partir de lava produzida por vulcões há muito extintos. A esta nova concepção, Werner contrapunha, afirmando que o basalto antigo com as características das lavas actuais resultava do facto de o precipitado original ter sido fundido pelo fogo alimentado pela combustão das camadas de carvão subjacentes, um argumento que não convenceu os seus opositores.

Surgiu, então, uma das mais notáveis polémicas no domínio das geociências. Aos neptunistas, centrados na escola alemã de Freiberga e, por isso, também chamados wernerianos, opunham-se os vulcanistas contemporâneos, com particular relevo para os geólogos italianos e franceses, com toda a experiência que tinham do vulcanismo activo no Mediterrâneo, no caso dos primeiros, e do vulcanismo relativamente recente, do Miocénico inferior (20 Ma) ao Quaternário, embora extinto mas ainda evidente, nos Puys-de-Dôme, no Maciço Central francês, no caso dos segundos.

Serenados os ânimos e numa análise histórica, necessariamente desapaixonada, deve atribuir-se à visão neptunista o mérito de ter interpretado a consolidação dos sedimentos de uma forma mais correcta do que a contida na teoria plutonista protagonizada por James Hutton (1726 - 1797), na Escócia. Com efeito, a diagénese está mais próxima da concepção werneriana do que a preconizada por Hutton e seus seguidores, que apontavam o calor como o principal agente da consolidação dos sedimentos. Assim, por exemplo, para os plutonistas, os conglomerados, que hoje sabemos serem de cimento silicioso, eram vistos, erroneamente, como cascalheiras antigas que haviam sido penetradas ou injectadas por sílica em fusão, a mesma que, segundo eles, gerava as concreções de sílex no Cré (Cretácico) inglês e francês. A teoria de Werner assentava numa sequência de estratos que, não sendo ainda a biostratigrafia dos séculos XIX e XX, tinha valor cronológico, embora relativo. A teoria de Hutton prescindia desse enquadramento temporal indissociável da história geológica, o que constituiu uma das suas fragilidades.

Os trabalhos verdadeiramente pioneiros de Werner contribuíram para a consagração da geologia e da mineralogia como ciências distintas. Quanto à primeira, divulgou o termo Geognósia, proposto por Georg Christian Füchsel (1722-1773) a meados do século XVIII, como designação de uma disciplina de acentuado cunho geológico, definida como a “ciência que trata da Terra sólida como um conjunto e das diferentes origens e localizações de minerais e rochas, assim como das suas interrelações”. Werner estabeleceu, ainda, as primeiras teorias (com base nas então modernas física e química) para explicar a origem e as características das formações geológicas. Sob o seu impulso, as ciências que hoje compõem a geologia ganharam um novo ímpeto e a observação e estudo da estrutura da Terra passou a seguir o moderno método científico.

Werner desenvolveu a mineralogia como um dos campos mais avançados e importantes da engenharia de minas do seu tempo. Neste campo, foi o primeiro cientista a propor um sistema verdadeiramente científico de classificação dos minerais, sendo apontado pelos historiadores das geociências como o “pai da mineralogia moderna”. Apesar de hoje ser considerada obsoleta, esta classificação ainda tem marcas na actual mineralogia. A sua nomenclatura dos minerais e muitas das suas descrições ainda são utilizadas. Tendo sido um ávido coleccionador de minerais, reuniu uma colecção de mais de 10 000 exemplares que legou à sua Escola e que hoje está patente na Technische Universität Bergakademie, de Freiberga.

A wernerite, um tectossilicato de alumínio e sódio, do grupo da escapolite, foi assim designado, em 1800, por José Bonifácio de Andrada e Silva, em homenagem a este que foi seu professor.

Em 1848, também a associação mineralógica (Mineralogische Gesellschaft), de Dresden, construiu um monumento em sua honra no cemitério de Annen de Löbtau e conseguiu que esta cidade desse o nome de Wernerstraße a uma das suas ruas. Em 1851, Werner foi homenageado com um monumento colocado na movimentada Promenaden, no centro de Freiberga.

A Sociedade Alemã de Mineralogia (Deutsche Mineralogische Gesellschaft) instituiu em sua honra a Medalha Abraham-Gottlob-Werner, no sentido de galardoar os cientistas que se distingam no campo da mineralogia e ciências afins.

Publicado 20th October 2011
A. Galopim de Carvalho

PELO DINHEIRO FÍSICO CONTRA A EXCLUSÃO E A AUTOCRACIA DIGITAL. I Conferência da DENÁRIA PORTUGAL

Uma nova associação cívica surgiu no nosso país. A sua designação é "Denária Portugal" e o seu propósito é a defesa da circulação do papel moeda na sua versão física, palpável, de notas e moedas metálicas.
Teve a sua 1.ª Conferência na semana que terminou no dia 22 de Fevereiro. A oração de abertura foi proferida pelo Professor Mário Frota, seu mandatário nacional e nome distinto da defesa do consumidor. Aqui a reproduzimos, com alguns cortes.

Senhoras e Senhores
Distintos Conferencistas
Salve!

Aos que se propuseram aceder ao convite que se lhes dirigiu, uma palavra de apreço e de homenagem. De apreço porque se revelam despertos, na estonteante massificação dos fenómenos sociais, para iniciativas do jaez das que nos movem na imersão de modelos que se têm, quantas vezes, por menos úteis aos Homens e Mulheres e para a comunidade circum-envolvente. De homenagem porque em sociedade acrítica e ignominiosamente manipulável por interesses que se insinuam por formas menos ortodoxas, desfrutam de uma capacidade singular e crítica que se manifesta, quanto mais não seja, pelo intuito de ouvir, de filtrar, de impugnar, contraditando e concluir.

Em Paulo de Morais, uma voz a ecoar entre nós, como um toque a rebate em tempos de Cidadania comprometida e que arregimenta na Frente Cívica um dos últimos esteios de resistência ao amorfismo, ao acriticismo e à anestesia reinante, saúdo, afinal, quantos nos honram com a sua presença e conferem ao acto de lançamento da DENÁRIA PORTUGAL a relevância que se lhe reconhece.
Especial aceno às autoridades que se dispuseram a marcar presença: da Direcção-Geral do Consumidor, cuja figura primeira se acha ausente do País, à Autoridade Reguladora do Mercado em Geral, a ASAE.
Saúdo ainda quantos se propuseram integrar os painéis e acompanhar-nos na Jornada que ora nos congrega, do Banco de Portugal ao Banco Alimentar contra a Fome, da União Distrital das IPSS à apDC – Direito do Consumo/Portugal, da Confederação do Comércio de Portugal, à Associação Nacional de Freguesias e à Associação das Marcas de Retalho e Restauração.
Especial alusão aos moderadores em que repousa, afinal, a condução dos trabalhos que se pretende singular e marcante.
À Confederação do Comércio e Indústria Portuguesa, que nos acolhe nas suas vetustas instalações e ao seu preclaro presidente, Dr. Rui Miguel Nabeiro, o patente reconhecimento e o enlace de propósitos que no acto se reflecte.

Constitui para nós suma distinção, o outorgar-se-nos a missão de mandatário de uma instituição que surge em momento em que se intensificam as medidas para a exclusão das notas em papel e das moedas metálicas, em circulação, do giro comercial. E o facto revela-se-nos de uma crueza desumanizante: um cidadão sem acesso a meios de pagamento digitais que se acerque de um estabelecimento de padaria para adquirir dois papo-secos vê-lhe negado o acesso ao pão, alimento essencial, por não ser detentor de uma tarjeta de crédito e ou débito (...). A simples recusa de uma nota ou de moedas metálicas berra na paisagem do sistema e constitui uma afronta a direitos elementares. E, no entanto, aí está a impor se cerrem fileiras em homenagem a elementares princípios e a direitos inalienáveis (...).

A Denária Portugal surge, como emanação da sociedade civil, em momento delicado em que se pretende que a transição da denominada sociedade analógica para a sociedade digital ocorra de modo acelerado com eliminação de todos os traços do passado e uma legião de deserdados da fortuna a engrossar as hostes dos excluídos. E o escopo que se lhe imprime é o de assegurar, prima facie, que a moeda com curso legal subsista pelos relevantes e indescartáveis interesses que nela convergem.
Nada de tão elementar, nada de mais desafiante:
. Universalidade do acesso ao dinheiro, como o conhecemos, às notas em papel e às moedas metálicas;
. Inclusão financeira: diversidade de opções de meios de pagamento para que aos consumidores se não vede o acesso, segundo necessidades e conveniências, a distintos meios, mormente no que tange à legião dos que esmagados se acham entre os limiares da miséria e da pobreza;
. Numerário como ultima ratio, o valor de refúgio em caso de disrupção de outros meios de pagamento
. Numerário enquanto pilar da cultura da economia local e de proximidade nomeadamente no quadro do pequeno comércio e no dos negócios familiares
. Numerário como meio de controlo de disponibilidades e óbice ao fenómeno do excessivo endividamento arrostado pelo acesso à moeda digital e ao anatocismo (o inestancável fenómeno dos juros sobre juros que perturbam uma qualquer economia doméstica submersa no fenómeno do superendividamento)
. Numerário como elemento base para uma educação financeira, como alicerce, como suporte para a literacia financeira de crianças e jovens, mas também dos de idade mais avançada, enquanto imperativo inalienável emergente dos ditames da Comissão Europeia inscritos nos trabalhos preparatórios da Directiva do Crédito de 23 de Abril de 2008.
E, como pilares de um plano de actuação de conformidade, os objectivos que se lhe assinam, a saber: o Sensibilizar autoridades, agentes económicos e cidadãos em torno da importância de preservação do numerário como meio de pagamento; o Promover o alargamento da cobertura da rede de ATM a regiões deprimidas e de menor densidade populacional e, por conseguinte, manifestamente desfavorecidas o Zelar pelo cumprimento do direito à diversidade dos meios de pagamento, denunciando os segmentos de actividade que vedem o pagamento em numerário; o Garantir uma transição digital inclusiva susceptível de salvaguardar o direito dos consumidores do acesso ao dinheiro vivo, em numerário, à semelhança de outros países europeus, com real destaque para as conclusões ora reveladas pelo Bundesbank (Banco Central Alemão) que em um Fórum Nacional do BDGW, que houve lugar a 16 p.º p.º, em Berlim e em Brandenburgo, exaltou a relevância do papel moeda com curso legal como insubstituível, ainda que em ambiente de mudança (...).

Aliás, a Nova Agenda Europeia do Consumidor com a chancela das estâncias em que os 27 se congregam, nos eixos em que assenta e por que se desdobra, privilegia a transformação digital e a transição ecológica, como o alfa e o ómega dos objectivos que força é se logre alcançar no quinquénio 2021 / 2025. E nela se realça - no que ao sistema de pagamentos de pequenos montantes se reporta – o papel insubstituível da moeda com curso legal, que há que preservar, a todo o transe.

Em suma, o papel moeda com curso legal tem uma moldura irrecusável e como características: o anonimato, a inclusão, o seu emprego simples e fácil, a imediata disponibilidade, a gratuitidade do acesso (...), a segurança (cfr. o exponencial número de fraudes que hoje assolam o digital com valores absolutamente astronómicos em causa).
Aliás, sem nos determos, porque redundantes, nas mais características enunciadas, se elegermos o anonimato como exponencial valor de privacidade, já de si seria bastante para se conferir primazia ao dinheiro físico, ao numerário, como paliçada contra a persecução absoluta dos nossos passos pelos distintos poderes, num permanente refazimento de trajectos e de cursos de vida para um domínio maior. Da simples compra de uma côdea de pão à aquisição de uma badana de bacalhau no minimercado do bairro ou na passagem por uma portagem para um encontro inocente, mas na esfera da privacidade, tudo é detectável, tudo é controlável, sem forma de resistir a uma ditadura do digital a que ninguém escaparia.
Aliás, o domínio da nossa vida pelo digital exige, como refulge da Nova Agenda Europeia do Consumidor, se afeiçoe o ordenamento às realidades circum-adjacentes, como dos seus termos emerge:
“Necessidade de adaptar o edifício normativo de protecção do consumidor ao ambiente digital, já que os cidadãos se encontram expostos a não raras práticas comerciais desviantes: Definição de perfis, Publicidade oculta ou subliminar, Fraudes e burlas de extensão inenarrável, artifícios, sugestões e embustes com configurações inimagináveis, Informação falsa, falaciosa, tendenciosa e enganadora, Manipulação das avaliações dos consumidores”
Há que obstar a que tais objectivos se consumam, como, de resto, no domínio das vidas de cada e de todos pelo simples manuseamento de um simples cartão bancário.

Claro que ninguém propugna a exclusividade do dinheiro vivo, a contado, do dinheiro físico, das notas e das moedas metálicas. Claro que em matéria de pagamentos a dinheiro, em dinheiro vivo, a contado, também se registam excepções. Algo que é indispensável se revele para que não subsistam eventuais dúvidas, em um plano de moderação, razoabilidade e de controlo de excessos. Registe-se que há, pois, restrições legais ao pagamento com numerário, como decorre da Lei n.º 92/2017, de 22 de Agosto:
“É proibido pagar ou receber em numerário em transacções de qualquer natureza que envolvam montantes iguais ou superiores a 3.000 €, ou o seu equivalente em moeda estrangeira. Quando o pagamento for realizado por pessoas singulares não residentes em território português, e desde que não actuem na qualidade de empresários ou comerciantes, o limite ascende a 10 000 €. É proibido ainda o pagamento em numerário de impostos cujo montante exceda 500 €.”
O Banco Central Europeu entende interpelar-nos a propósito dos pagamentos em numerário: “Podem os comerciantes recusar-se a aceitar numerário como meio de pagamento?” Com base na Recomendação 2010/191/UE, de 22 de Março de 2010, da Comissão Europeia define cautelarmente: i. Os comerciantes não podem recusar pagamentos em numerário, a menos que as partes [os próprios e os consumidores] tenham acordado entre si a adopção de outros meios de pagamento; ii. A afixação de letreiros ou cartazes a indicar que o comerciante recusa  pagamentos em numerário, ou pagamentos em certas denominações de notas, não é por si só suficiente nem vinculante para os consumidores; iii. Para que colha, terá o comerciante de invocar fundadamente uma razão legítima para o efeito às entidades que superintendam nos sistemas de pagamento; iv. Entidades públicas que prestem serviços essenciais aos cidadãos não poderão aplicar restrições ou recusar em absoluto pagamentos em numerário sem razão válida, devidamente fundada e sancionada por quem de direito…

A violação destas regras não tem, porém, entre nós uma qualquer sanção, o que é algo que se reveste manifesta gravidade. Daí que o caminho, para se sustar a onda que pode, entretanto, submergir-nos, no afã de tudo reduzir ao digital (com as discriminações e as exclusões que daí advêm), seja o de forçar a mão ao legislador para que a recusa de aceitação de notas e moedas comporte sanções adequadas, proporcionadas e dissuasivas. Esse é um desideratum, entre outros, que a DENÁRIA PORTUGAL visa alcançar:
. persuadir o legislador, tão logo o regime volte à regularidade institucional, a que se estabeleça uma moldura punitiva, sancionatória sempre que se desrespeite o ordenamento e o sistema financeiro com a recusa de notas e moedas com curso legal no giro comercial.
. exigir que haja uma preocupação pedagógica, através dos departamentos conectados, em instruir o tecido empresarial em contacto directo com os consumidores finais acerca da aceitabilidade do dinheiro com curso legal, brandindo-se o rigor da lei sempre que haja defecções e se vede aos adquirentes a faculdade de pagar em numerário o que quer que seja.
Claro que há uma via indirecta para se infligir aos prevaricadores adequada sanção, a saber, sempre que haja uma denúncia de recusa ou o BdP detecte a detecte, é-lhe lícito, enquanto Regulador, emitir directrizes a que imponham se afeiçoem tais estabelecimentos aos ditames da lei. Se, porém, persistirem em uma tal atitude, recusando-se a observar as directrizes emanadas do Banco Central, poderão ser desencadeados os mecanismos processuais do crime de desobediência previsto e punido pelo Código Penal, em seu artigo 348:
“1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
2 - A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.”
A DENÁRIA PORTUGAL entende, porém, que à semelhança do que ocorre em hipóteses como as das práticas negociais desleais, há que esboçar uma moldura que em tudo se lhe compagine:
“Se as contra- ordenações … corresponderem a infracções generalizadas … o limite máximo das coimas a aplicar no âmbito de acções coordenadas, …, corresponde a 4 % do volume de negócios anual do infractor nos Estados-Membros em causa, sem prejuízo do seguinte:
Quando não esteja disponível informação sobre o volume de negócios anual do infractor, o limite máximo da coima é de 2 000 000 (euro).”
Como o sustentam as instâncias europeias, só sanções adequadas, proporcionais e dissuasivas poderão obstar à reiterada prática de infracções que põem em causa, em cada um dos espaços, a paz social e a são convivência entre cidadãos de parte inteira. Do plano constam, pois, contactos com decisores políticos para aperfeiçoamento do ordenamento no que tange a pagamentos até aos limites físicos admitidos com notoriedade para a enunciada moldura coercitiva de que o sistema carece instantemente, como se realçou.

Mas o Plano de Acção da DENÁRIA PORTUGAL não se esgota em um tal meio que se exercerá perante as estâncias do poder. Compreende uma mancheia de actividades que tendem, por um lado, a estimular o debate e a visibilidade que o tema de defesa do numerário demanda como veículo de prevenção dos riscos de restrição ao uso, ao emprego, à circulação do dinheiro físico; e, por outro, dar voz aos que, não tendo acesso a instrumentos de mediatização, são prejudicados por uma radical tendência de digitalização não inclusiva (,,,).

A conferência que ora principiou consubstancia o primeiro acto público da DENÁRIA PORTUGAL, que convém a justo título evidenciar, num plano, a um tempo, ambicioso e exequível, que revelará decerto os propósitos que no querer da instituição se imbricam (...).

A Democracia, na sua vertente económica, assente no pilar da liberdade de acesso ao mercado, na sustentabilidade e no esbatimento das desigualdades em particular dos hipervulneráveis, apela:
• Ao Princípio da Protecção dos Interesses Económicos do Consumidor plasmado no artigo 60 do Texto Fundamental cuja violação se centra no confinamento aos meios de pagamentos digitais com limitação ou exclusão absoluta do numerário:
• À Liberdade de Escolha que se veda quando se restringe ou elimina o numerário como meio de pagamento, ao arrepio das regras de direito privado consubstanciadas no direito civil, como direito privado comum, como no domínio do direito do consumo
• À segurança física contra as debilidades patentes na cibersegurança e como resultado da exponencial conduta delituosa global (com o furto ou o roubo de cartões, a sua clonagem e o assalto às reservas dos consumidores)
A DENÁRIA PORTUGAL, como instituição emergente da sociedade civil e de escopo não egoístico, não surge desinserida de um movimento global que aspira a análogos objectivos e se acha esparso pelo cosmos ante o inopinado avanço do digital catapultado sobretudo pela pandemia que submergiu as sete partidas do globo. Congéneres convenientemente estruturadas e com programas bem articulados no terreno avultam em: Espanha, Reino Unido, Suécia, EUA Austrália, o para além de instituições outras que se perfilam já no horizonte em França e na Alemanha em pugna pela subsistência de notas e moedas com curso legal.

Daí que o movimento tenda a universalizar-se: Portugal não poderia assistir impassível ao que ocorre em seu redor (...). À primeira conferência, que ora decorre, outras seguirão que o debate, na sociedade digital, em torno destes elementos, é algo de inevitável como princípio de tutela dos cidadãos ameaçados na esfera própria dos seus inalienáveis direitos.
A DENÁRIA PORTUGAL enlaçada em todos e cada um. Que saibam todos que com a DENÁRIA PORTUGAL poderão contar incondicionalmente, sem reservas nem tergiversações.
Votos se auguram de bons trabalhos.
Decerto que da Conferência sairemos mais enriquecidos, cônscios dos perigos que espreitam e das reacções que mister será desencadear."
Mário Frota

MORREU O NUNO

Homenagem possível a um poeta acabado de partir. Morreu o Nuno Júdice, coitado, prematuramente, o que é injusto. Com aquele seu ar desacti...